A Falácia de Popper e a Pseudo Democracia Brasileira

Por Tiago Lucero

A democracia é frágil. E sempre foi. Tão frágil que qualquer defensor mais entusiasmado corre o risco de matá-la em nome de sua proteção. Desde que Karl Popper formulou seu famoso paradoxo da tolerância, muitos viram ali um farol para guiar os rumos das sociedades abertas. Mal sabiam que aquele brilho poderia, na verdade, vir de um incêndio.

Recapitulemos: Popper enuncia um dilema aparentemente simples. Se formos absolutamente tolerantes com os intolerantes, os intolerantes nos destruirão. Daí, conclui-se: devemos ser intolerantes com os intolerantes. Parece razoável – até que essa “razoabilidade” se torne o maior argumento dos totalitários. Afinal, quem define o que é intolerância? Quem nomeia o intolerante?

Voltemos à história. Após a Noite dos Cristais, em 1938, o Partido Nazista inflamou o Reichstag, culpou judeus e comunistas, e exigiu poderes extraordinários para proteger a Alemanha da “ameaça”. Um discurso inflamado, é claro, pela necessidade de defender a democracia contra os intolerantes. O resto, bem, nós sabemos.

Hoje, em pleno 2025, o Brasil vive seu próprio simulacro. Alexandre de Moraes transformou o paradoxo popperiano em jurisprudência cotidiana. Intolerantes? Todo aquele que ousa criticá-lo. Todo aquele que questiona a narrativa oficial. Todo aquele que não reconhece no Supremo Tribunal Federal uma extensão do Comitê Central da Verdade.

Sob a capa da defesa da democracia, Moraes tornou-se vítima, investigador, promotor e juiz. Ordena prisões sem respaldo legal, censura perfis, ignora garantias fundamentais, e justifica tudo com uma retórica perigosamente semelhante à de regimes que juramos nunca mais repetir. O erro de Popper é brutalmente simples e se manifesta em três dimensões principais:

Primeiro, um erro lógico estrutural: se o intolerante deseja instaurar a intolerância, e você, ao combatê-lo, adota precisamente a intolerância como método, você valida a tese dele. Você não impede a intolerância – você a confirma. O intolerante, então, se vê justificado, pois o sistema se revelou igualmente intolerante. A democracia, nesse gesto, abdica de sua própria essência para combater uma caricatura de si mesma.

Segundo, um erro estratégico e histórico: a solução de Popper fornece um álibi perfeito para que regimes autoritários justifiquem suas ações em nome da democracia. A fórmula “não se pode ser tolerante com os intolerantes” foi – e continuará sendo – instrumentalizada por ditadores para eliminar o contraditório e solidificar o poder. Hitler o fez. Mussolini também. Stalin nem se preocupou em disfarçar. E agora, a retórica ressurge em solo brasileiro.

Terceiro, um erro idealista e cognitivo: Popper presume a possibilidade de um debate racional contínuo, em um ambiente deliberativo onde a razão impera. Mas a política real raramente se dá nesse terreno. A política é o prolongamento da guerra por outros meios – travada com retórica, dissimulação, estratégias de poder e disputas institucionais. Num ambiente tão instável, a aplicação da intolerância seletiva se converte rapidamente em arbítrio absoluto. E mesmo que se pudesse, maquiavelicamente, calar todos os supostos intolerantes, haveria sempre gerações futuras dispostas a reinterpretar a história, compadecer-se dos vencidos e reacender o ciclo da intolerância em nome de combatê-la.

A democracia, como conceito pleno, é uma utopia reguladora. Algo que nunca se alcança, mas que nos guia. Quando se deixa de buscá-la e se decide substituí-la por um dogma armado, você não a protege – você a mata.

O verdadeiro democrata não se vale de exceções permanentes, nem de paradoxos mal resolvidos. Ele prefere perder no jogo do que destruir o tabuleiro. Porque, no fim, quem se diz intolerante com os intolerantes é apenas mais um intolerante no poder. E o Brasil, pelo visto, não entende isso.

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