Além de ser encarada como um dos ícones mais fascinantes da região nortenha, é uma construção que contém um certo quê de místico.
Portugal é um país repleto de histórias e lendas. Estas podem ser encaradas como uma espécie de roteiro entusiasta, encarregado de perpetuar parte do berço cultural do patrimônio. A Ponte da Misarela, situada em Vieira do Minho, em Braga, exemplifica na perfeição a existência desse roteiro neurolinguístico.
Apelidada de “Ponte do Diabo”, esta infraestrutura remonta à Idade Medieval. Sofreu uma reconstrução por volta do século XIX e o cenário onde está enquadrada parece um quadro natural, que merecia estar exposto na ala realista do Museu do Louvre, em Paris.
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Sobre os penados rochosos, ergue-se a Ponte da Misarela. Está inserida num monumental desfiladeiro escapado, decorado com vegetação densa e viçosa, agitada por uma cascata exuberante.
A crucial particularidade desta construção está na lenda que a promove. Além de conter um imponente arco de 13 metros — que conserva os tempos idos das batalhas napoleônicas travadas no seu terreno periférico —, a Ponte da Misarela é conhecida como a obra arquitetônica do “Diabo” (ou, se preferir outros sinônimos, do Satanás, de Belzebu, de Mefistófeles, de Lúcifer ou do Demônio).
Reza a lenda (secular, por sinal), que os moradores de duas aldeias, a de Frades e a de Vila Nova, sentiam a necessidade de construir uma ponte que as ligasse, servindo de passagem para os membros das comunidades locais e para os seus animais. Desta forma, começaram a esculpir aquilo que hoje é a Ponte da Misarela.
Depois de terminarem o trabalho, regressaram às suas casas. Até que, no dia seguinte, quando estavam prestes a fazer uso da ponte, viram que esta havia sido derrubada. Obstinados, enquanto tentavam reerguê-la novamente, observaram que as pedras que a sustentavam começaram a estalar, levando-a ao desabamento.
Depois das inúmeras tentativas infrutíferas de reedificação, as pessoas, indignadas, começaram a especular que as derrocadas tinham sido provocadas pelo “Diabo”. Até que, no local, ecoou a seguinte frase: “nunca conseguireis segurá-la em pé”.
Atordoadas, as pessoas decidiram confrontar o padre da freguesia com o que tinham ouvido. Este, surpreendido com o relato, afirmou: “voltai a reconstruí-la, porque desta vez não cairá”.
Confiando naquilo que o padre lhes havia afiançado, os cidadãos começaram a reconstruir a ponte — pela trigésima vez. Mas não o fizeram sozinhos: o sacerdote da paróquia acompanhou-os, levando, escondido debaixo do seu capote, um pão benzido.
No momento em que foi colocada a última pedra na Ponte da Misarela, a estrutura começou a abanar, ameaçando que iria ceder. Convicto, o padre apressou-se a lançar o pão para cima desta, benzendo-a. “Em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo”, ouviu-se.
Diz-se que o “Diabo”, ao ouvir as palavras divinas e ao sentir que a água benta se infiltrava nas fendas da construção, apressou-se a abandonar o local. No entanto, a presença dele ficou imprimida.
Uma vez que a edificação apresenta traços ligeiramente tortos (ou toscos, porque foi construída há muitos séculos por mão de obra pouco qualificada), alega-se que o ombro desta entidade maligna ficou marcado, amolgando a infraestrutura, quando a tentava desabar pela última vez.
Se outrora esta ponte foi amaldiçoada pelo “Diabo”, há quem defenda que esta é milagrosa. Associada também a este local, a lenda da fertilidade tem sido perpetuada pelas gerações.
Na época, como não havia um acompanhamento médico regrado durante o período da gravidez, o número de crianças que nasciam antes do tempo, sem vida, era elevado. Acredita-se que, se uma mulher, que havia perdido um filho no passado, estivesse novamente grávida, deveria dirigir-se até à Ponte da Misarela e esperar.
Esta, fazendo-se acompanhar por duas pessoas, teria que se colocar em cima do arco da infraestrutura — ou seja, no meio —, à meia-noite em ponto. Aos acompanhantes cabia-lhes a tarefa de impedir que algum animal passasse sobre a estrutura, no preciso momento em que a mulher grávida lá estivesse; caso contrário, o milagre não se realizava.
Durante o ritual, os intervenientes tinham que permanecer no local até que uma quarta pessoa o cruzasse. Assim que esse objetivo fosse cumprido, o indivíduo que passasse a ponte era convidado a batizar a criança, que ainda estava (confortavelmente) dentro da barriga da mãe, apadrinhando-a ou amadrinhando-a no final.
Para consumar a cerimônia, existia um jarro, uma corda comprida e um ramo de oliveira. O padrinho ou a madrinha da criança ficavam responsáveis por prenderem o fio ao recipiente, baixando-o até ao rio — que, atualmente, continua a correr por baixo da ponte —, de forma a enchê-lo com água. Depois, encarregavam-se de molhar o ramo de oliveira, que seria usado para fazer uma cruz na barriga da mãe, enquanto proferiam a seguinte oração:
“Eu batizo-te
em nome do Pai,
do Filho,
e do Espírito Santo.
Se fores rapaz, o
teu nome será Gervás;
e se fores rapariga, o
teu nome será Senhorinha.”
Após o batizado, todos regressavam a casa e, segundo os relatos, os bebes nasciam com saúde; tanto o primeiro filho, como os restantes.
Em Portugal, os acervos das lendas e das tradições orais foram influenciados, em larga escala, pelo Cristianismo. Desta forma, é normal existirem diversas referências religiosas no seu legado histórico. Além disso, realçamos que, em quase todas as lendas, existem variações das narrativas.
Como estas eram transmitidas oralmente, muitas sofreram adulterações. Portanto, não estranhe se encontrar mais do que uma versão da história da Ponte da Misarela. Esta foi-nos disseminada pelo Centro de Estudos Ataíde Oliveira (CEAO), que se dedica ao estudo da tradição oral (patrimônio cultural imaterial), nos seus vários géneros: contos, lendas, cancioneiro e provérbios
Desde 1993, a Ponte da Misarela é considerada Imóvel de Interesse Público. Caso não o tenha conquistado pela história, esperemos que o conquiste pela beleza. Garantimos-lhe que é, passando a expressão, “de cortar o fôlego!” — literalmente, porque os trilhos são íngremes.