As referências islâmicas na Divina Comédia de Dante

O arquétipo de um viajante que parte ao sobrenatural, nomeadamente Paraíso e Inferno, com um acompanhante espiritual o guiando por uma jornada épica, com toda certeza não foi uma criação do florentino Dante Alighieri (1265-1321) e sua obra “A Divina Comédia”, estando também presente de formas diferentes em culturas antigas, apesar do impacto e qualidade do produzido por Dante não poder ser subestimado. Entretanto, o paralelo na literatura de uma grande aventura nas dimensões do pós vida com diversos círculos, punições e recompensas específicas e detalhadas que parece ter inspirado muito do ecrito pelo católico Dante, provavelmente está Islã. E provas históricas não faltam.
A referencia islâmica primária de uma viagem pelos diversos círculos da escatologia, corresponde a um incidente específico na vida do Profeta Muhammad, fundador da religião, conhecido como Isra wal Miraj ou a “A Viagem Noturna”, na qual acompanhado pelo Arcanjo Gabriel (que na Comédia torna-se o romano Virgílio), o Profeta partiu de Meca para Jerusalém montado numa criatura denominada al-Buraq, e de lá ascendeu aos Céus e Infernos, observado tudo que havia no sobrenatural, com complexos diálogos e descrições dos personagens no ocorrido, algo extremamente mais elaborado e similar a Divina Comédia, de que a descida de Enéias aos Reinos Ínferos na Eneida, que comumente é retratada como a inspiração única de Dante.
A Viagem Noturna parece ter exercido uma forte influencia em Dante na criação de seu clássico, e já teve seus paralelos diretos observados por muitos especialistas na Divina Comédia. Um dos primeiros foi o padre católico espanhol Miguel Asín Palacios, que em 1919 escreveu La Escatologia Musulmana en la Divina Comedia (“A escatologia muçulmana na Divina Comédia”), no qual traçou diversos paralelos exatos de referencias islâmicas, ausentes no catolicismo, que serviram de inspiração para Dante. Segundo Asín, Dante também derivou muitas características e episódios sobre a vida após a morte dos escritos espirituais do místico sufi Ibn Arabi, e diretamente da Viagem do Profeta. Ela já era conhecida pelos italianos através do Kitab al Miraj traduzido para o latim em 1264 ou pouco antes sob o título de ”Liber Scalae Machometi”, “O Livro da Escada de Muhammad”. O próprio Paraíso dantesco tem semelhanças significativas com os Céus islâmico e sua sétupla divisão, assim como o Inferno, com cada portão ou “círculo” guardado por um guardião com quem o viajante dialoga, tal qual ocorre com o Profeta na crença islâmica. As punições, para alguns pecados, chegam a ser identicas.
O sultão curdo e herói muçulmano das Cruzadas Salah ad-Din Yusuf ibn Ayyub (1138-1193). conhecido no Ocidente como ”Saladino”, retratado no Limbo dos pagãos virtuosos da Divina Comédia de Dante Alighieri no Codex Altonensis, compilado em 1360. De acordo com o universo do livro, Saladino apesar de não ser cristão, era um homem de virtudes, sendo assim condenado ao limbo de uma felicidade natural no Primeiro Círculo do Inferno. Ali junto com ele, também são colocados por Dante o filosofo Muhammad ibn Rushd, conhecido como ”Averróis”, e o médico Hussein Ibn Sina, ou “Avicena”.
Algumas semelhanças superficiais da Divina Comédia ao Risalat al-Ghufran ou ”Epístola do Perdão” do filosofo árabe do século IX al-Maarri também foram traçadas. No Risalat al-Ghufran, al-Maarri também descreve a jornada de um poeta nos reinos da vida após a morte e inclui o diálogo com habitantes do Céu e do Inferno, embora, ao contrário do Kitab al Miraj, haja pouca descrição desses locais.
Dante viva em uma Europa de substancial contato literário e filosófico com o mundo muçulmano, encorajado por fatores como o Averroismo e o patrocínio de Alfonso X de Castela, que chegou até mesmo a construir um Madraçal para que o erudito muçulmano de sua corte al-Riquti lecionasse o saber islâmico aos cristãos. O filósofo Frederick Copleston argumentou em 1950 que o tratamento respeitoso de Dante em sua obra para com os pensadores muçulmanos Ibn Rushd e Ibn Sina, ao sultão Saladino, bem como ao averroísta Siger de Brabante, indica seu reconhecimento de uma dívida considerável para com a filosofia islâmica da qual derivara seu universo.
No entanto, a figura do proprio Profeta Muhammad aparece no Inferno da Comédia sendo partido por um demonio por “dividir a Cristandade criando sua propria heresia”- alguns cristãos medievais viam o Islã com uma heresia do cristianismo, e não uma religião totalmente separada -, e Ali, primo e genro do Profeta, tendo sua cabeça dividida por “ter dividido o Islã criando o xiismo”. Uma clara concessão ao cruzadismo de um católico devoto que sabia reconhecer a nobreza de Saladino, a filosofia de Ibn Rushd, a medicina de Ibn Sina, o valor épico da Isra, mas ainda assim odiava o fundador de tudo aquilo.
A mesma tensão também pode ser vista em relação ao paganismo grego, outra inspiração mais presente na obra, na qual notáveis pertecentes a religião são enviados ao limbo ou ao inferno como os islâmicos.
No trabalho da filóloga italiana Maria Corti e do francês Jacques Monfrin, também foi observado que, durante sua estada na corte do já mencionado Alfonso X, o mentor de Dante, Brunetto Latini, conheceu Bonaventura de Siena, o toscano que traduziu o Kitab al Miraj do árabe para o latim. Dai, especula-se que Brunetto pode ter fornecido uma cópia dessa obra a Dante, que dela pegou todas as referencias islâmicas que aparecem na Divina Comédia.
FONTE: historiaislamica.com
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