Banzo: a depressão e o suicídio de escravizados eram fatos corriqueiros

Pouco discutido nos livros, os escravos ficavam entristecidos, paravam de falar e, acima de tudo, deixavam de se alimentar.

“Apareceu ontem enforcado com um baraço [corda de fios de linho], dentro de um alçapão, na casa da rua da Alfândega, nº 376, sobrado, o preto Dionysio, escravo de D.
Olimpya Theodora de Souza, moradora na mesma casa. O infeliz preto, querendo sem dúvida apressar a morte, fizera com uma thesoura pequenos ferimentos no braço…”

Essa nota, chocante, publicada no Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, em 22 de junho de 1872, revela uma faceta pouco conhecida da escravidão: os escravos se suicidavam. E com o índice de “mortes voluntárias” entre eles, quando comparado ao de homens livres, era duas ou três vezes mais elevado.

Os suicídios de escravos também se diferenciavam em outros aspectos. O mais notável deles era o fato de atribuir-se o gesto ao banzo. Ainda hoje se discute o significado dessa palavra. O mais aceito tem uma remota origem africana, equivalendo a “pensar” ou “meditar”. O termo também, há tempos, designou uma doença.

Em 1799, por exemplo, Luiz António de Oliveira Mendes apresentou, na Academia Real de Ciências de Lisboa, um estudo sobre “as doenças agudas e crônicas que mais frequentemente acometem os pretos recém-tirados da África”. O banzo constava entre elas.

Os sintomas? Os escravos ficavam entristecidos, paravam de falar e, acima de tudo, deixavam de se alimentar, mesmo “oferecendo-se-lhes” – afirma o médico – “as melhores comidas, assim do nosso trato e costume, como as do seu país…”, falecendo pouco tempo depois.

No século 19, com o desenvolvimento das primeiras teorias psicológicas, o comportamento dos escravos banzeiros foi reconhecido como distúrbio mental. Em 1844, Joaquim Manoel de Macedo, na tese médica intitulada Considerações Sobre a Nostalgia, afirma o seguinte: “[…] estamos convencidos de que a espantosa mortandade que entre nós se observa nos africanos, principalmente nos recém-chegados, bem como de que o número de suicídios que entre eles se conta, tem seu tanto de dívida a nostalgia […]”

Aos poucos, a associação entre nostalgia e banzo se tornou popular. No Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de 1875, de Joaquim de Macedo Soares, é possível ler a seguinte definição: “banzar: estar pensativo sobre qualquer caso; triste sem saber de quê; sofrer do spleen dos ingleses; tristeza e apatia simultânea; sofrer de nostalgia, como os negros da Costa quando vinham para cá, e ainda depois de cá estarem”.

Hoje, a palavra “nostalgia”, difundida na literatura, é sinônimo de “saudade”, um sentimento. Situação bem diferente é pensá-la como doença. Tal rótulo – assim como o de banzo – provavelmente encobria uma vasta gama de problemas psicológicos ou psiquiátricos, que iam da depressão à esquizofrenia; ou eram provocados pela desnutrição, por doenças contagiosas.

Não faltam exemplos de aproximações entre suicídio e doença mental. O citado Jornal do Commercio registra ocorrências de mortes voluntárias associadas a delírios: “Valentim, escravo de Faria & Miranda, estabelecidos na rua dos Lázaros nº 26, sofria há dias violenta febre, e era tratado pelo Dr. Antonio Rodrigues de Oliveira. Anteontem [20 de maio de 1872], às 9 horas da noite, ao que parece, em um acesso mais forte, Valentim feriu-se com um golpe no pescoço”.

Outras vezes se reconhecia explicitamente a loucura: “Suicidouse ontem [8 de março de 1872] à 1 hora da tarde, enforcando-se, a preta africana Justina, de 50 anos, escrava de Narciso da Silva Galharno. O Sr. 2º Delegado tomou conhecimento do fato e procedeu a corpo delito. Consta que a preta sofria de alienação mental”.

Como todos os testemunhos do passado, os textos acima devem ser lidos com olhos críticos: o registro de suicídio pode encobrir assassinatos praticados por senhores. Tal fato não implica em diminuir o banzo como uma das expressões trágicas da loucura comum a milhões de pessoas vítimas do tráfico de escravos.

Por outro lado, a divulgação desse sofrimento nos jornais deve ter contribuído para a formação da sensibilidade abolicionista na sociedade imperial. Por isso, o banzo pode ser entendido como uma forma não intencional de protesto político, um exemplo primário
de luta pela não-violência.

FONTE; SITE AVENTURAS NA HISTÓRIA

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