Gilmar Mendes manda fechar o Congresso Nacional

Vamos ao ponto: não há nada de técnico, jurídico ou “necessário” na decisão liminar de Gilmar Mendes. O que existe ali é puro instinto de sobrevivência institucional — ou melhor, sobrevivência pessoal travestida de jurisprudência. Quando um ministro do Supremo decreta que somente a PGR pode pedir o impeachment de um ministro do próprio Supremo, ele não está apenas reescrevendo a Constituição: ele está passando o cadeado na porta do Senado e devolvendo a chave para a própria Corte. É o auge da autofagia democrática.

A estrutura republicana nasce da separação dos poderes — não é invenção brasileira. É Montesquieu 101. Em qualquer democracia funcional, o Legislativo fiscaliza os outros poderes. É assim nos EUA, na Alemanha, na França, em Portugal — escolha um país democrático no mapa, qualquer um. Só no Brasil, pela pena generosa de 71 páginas do decano, cria-se a jabuticaba jurídica em que um poder decide unilateralmente que o outro não pode mais fiscalizá-lo. A explicação acadêmica é simples: isso é antirrepublicano. A explicação honesta é ainda mais simples: é medo.

E medo de quê? Dos mais de trinta pedidos de impeachment que chegaram ao Senado só este ano? Da irritação crescente do Congresso, que começa finalmente a perceber que virou um apêndice ornamental do Judiciário? Ou medo da própria sociedade, cansada de ver ministros transformando liminares em decretos monárquicos? O fato é que Gilmar agiu como quem vê fumaça e decide desligar o alarme para não ter que evacuar o prédio.

A liminar, além de tudo, é uma obra-prima de blindagem. Ele não apenas restringe quem pode denunciar: ele aumenta o quórum de admissibilidade. Antes, maioria simples. Agora, dois terços — o mesmo quórum de emenda constitucional. Tradução: para sequer discutir a responsabilização de um ministro, é necessário um consenso político maior do que para mexer na Constituição. É tão absurdo que chega a ser cômico — cômico como amarrar a porta de emergência e declarar que é “para segurança de todos”.

E como se não bastasse, Gilmar ainda determina que decisões judiciais não podem ser usadas como argumento para denunciar crime de responsabilidade. Ora, se um ministro do Supremo não pode ser responsabilizado por seus atos como ministro do Supremo, então por que existe impeachment? Para punir o quê? O corte de fila na chapelaria?

O Congresso reagiu — finalmente. A oposição articula uma PEC para devolver ao Senado aquilo que sempre foi dele: a prerrogativa de processar e julgar ministros do STF e, principalmente, de receber denúncias apresentadas por qualquer cidadão. É quase surreal que seja preciso escrever isso na Constituição, como se explicássemos a uma criança que “não, você não pode corrigir a prova que você mesmo fez”.

Mas o fato de essa PEC existir já mostra o tamanho da ruptura provocada pela liminar. O Supremo esticou a corda ao limite e agora se espanta com o barulho das fibras arrebentando. O Senado, ainda que lentamente, começa a entender que, se não reagir agora, não reagirá nunca mais. Hoje é a prerrogativa sobre impeachment; amanhã será sobre emendas; depois, sobre votações. A cada avanço do Judiciário, o Legislativo se apequena — e o Brasil retrocede décadas.

Gilmar não decidiu apenas sobre técnica jurídica. Ele decidiu sobre poder. Ele decidiu sobre quem manda. E, ao fazer isso, ele cometeu o gesto mais antidemocrático possível: atribuiu ao próprio Supremo a exclusividade do controle sobre si mesmo. É o mesmo que mandar o Congresso fechar para balanço — só que sem a parte do balanço.

No fim, a pergunta inevitável é: por que um ministro tomaria uma decisão tão ampla, tão desproporcional e tão evidentemente contrária ao espírito republicano? Talvez seja visão. Talvez seja convicção. Mas o cheiro é outro: é temor. Temor de se ver, pela primeira vez, submetido às mesmas regras que qualquer servidor público. Temor de ver o Senado redescobrir que também é Poder da República. Temor de que a democracia volte a funcionar como democracia.

E quando um ministro age por medo, em vez de agir pela Constituição, o país inteiro fica menor. Hoje, Gilmar não escreveu uma liminar. Ele assinou um editorial sobre até onde alguns estão dispostos a ir para não prestar contas a ninguém. E o nome disso não é técnica. Não é jurisprudência. Não é constitucionalismo evolutivo. O nome disso é fechar o Congresso — só faltou avisar a mesa diretora.

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