Quando a cultura popular é esquecida pelo próprio Estado, acaba sufocando pequenos projetos sociais e culturais que sustentam a cidadania nas periferias
Enquanto grandes eventos culturais ganham palcos iluminados e elogios oficiais, a verdadeira cultura — aquela feita nas praças, nas periferias e nos centros comunitários — agoniza, ignorada e desrespeitada.
Em 2024, mais de R$ 15 milhões em emendas parlamentares deixaram de ser executadas pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, segundo dados do SISCONEP. Valor suficiente para atender cerca de 150 projetos sociais espalhados pelas cidades do DF. Mas, como sempre, o investimento não chegou a quem mais precisa.
O ciclo de sofrimento das pequenas instituições culturais começa ainda na elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA). Os parlamentares fazem suas indicações, acreditando — ou esperando — que os recursos cheguem a quem faz cultura com pouco ou nenhum apoio. No entanto, o que se vê, ano após ano, é uma burocracia hostil e um desinteresse explícito em dar andamento aos projetos comunitários.
Brasília abriga mais de 15 mil organizações da sociedade civil, segundo o Mapa das OSCs. Destas, 90% são pequenas entidades. Menos de 500 conseguem acessar emendas parlamentares e, das que conseguem, quase um terço é impedida de executar os projetos por falhas administrativas da própria Secretaria de Cultura e Economia Criativa — que parece trabalhar contra o fomento em vez de a favor.
O processo de aprovação de um simples plano de trabalho é descrito por muitas entidades como uma verdadeira Via Crucis. O projeto original, com 15 rubricas, pode facilmente se transformar em um monstrengo de 50 rubricas, exigindo três orçamentos para cada item. Um entrave que beira o absurdo, desgastando tempo, paciência e dignidade das entidades que lutam para levar cultura e cidadania às pontas.
“Nos tratam como se estivéssemos cometendo um crime”, relata a gestora de uma entidade de Samambaia. “Nos humilham, duvidam da nossa capacidade, impõem dificuldades quase intransponíveis. E quando executamos, nos fiscalizam como se fossem policiais em operação, não servidores públicos colaborando com políticas públicas.”
A situação se agrava na fase de prestação de contas. Relatórios entregues são desconsiderados. Técnicos pedem documentos já enviados. E o medo de ver rubricas “glosadas” (termo técnico para cortes e devoluções obrigatórias de valores) cria um clima de terror institucional. Tudo isso, por parte de quem deveria ser parceiro, não obstáculo ou adversário.
O mais grave é que, enquanto isso ocorre nos bastidores da cultura comunitária, projetos milionários ligados a grandes grupos e interesses políticos fluem com agilidade incomum, recebendo honras em auditórios luxuosos e coletivas de imprensa. O contraste é cruel. A cultura nas pontas — viva, plural, necessária — continua sendo tratada como subcultura.
A Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF precisa urgentemente rever suas práticas. O recurso público não é propriedade da gestão, nem dos técnicos da pasta. É um direito da população. E quem está na ponta, muitas vezes com recursos próprios, segurando a arte, a formação cidadã e a esperança viva nas comunidades, não pode mais ser ignorado ou criminalizado.
O poder público deve assumir sua responsabilidade. A omissão custa caro. E, em 2026, quando baterem às portas dessas mesmas entidades em busca de apoio eleitoral, é bom lembrar: a cultura não esquece. E quem está na ponta, vai cobrar este desrespeito!