Moçárabes: A história e a vivência dos cristãos arabizados em al-Andalus

FONTE: HISTÓRIA ISLÃMICA

Durante os quase 800 anos do governo de diversas dinastias muçulmanas sobre o território da Península Ibérica (também chamada de Hispânia, por esse motivo optaremos por usar esta nomenclatura mais vezes), houve durante a maior part deste tempo uma pujante e antiga comunidade de cristãos, que datam sua origem dos tempos da Hispânia Romana, passando através da dominação visigótica e adentrando no fenômeno do Al-Andalus. Com seus próprios ritos e tradições que distinguir-se-iam do resto dos cristãos do Ocidente Latino, os moçárabes tiveram uma verdadeira epopeia: de protegidos e colaboradores, passaram a traidores e perseguidos. Neste texto veremos os principais pontos e características da comunidade cristã arabizada conhecida como os “moçárabes”.

Origens e primeiros anos

A palavra “moçárabe” (em espanhol mozárabe) vem da palavra árabe must’arib, que significa “arabizado”, isto é, um indivíduo ou grupo que adotou costumes árabes. Presentes tanto nos territórios que hoje compõe Portugal quanto aqueles que compõe a Espanha, a denominação dos  moçárabes diz respeito à comunidade de cristãos de rito e tradição ibero-romano-visigótica que, durante o período de dominação muçulmana conhecido como Al-Andalus, acabou adotando costumes arábicos à semelhança dos muládis, os ibéricos que se converteram ao Islã e, consequentemente, se arabizaram, porém como os moçárabes, não se arabizaram totalmente, mantendo diversos traços e costumes pré-islâmicos e, até mesmo, pré-cristãos.]

Em 711 e.c, Tariq ibn Ziyad desembarcou na Hispânia a pedido de nobres visigodos que queriam sua assitência na guerra civil que havia pelo trono da Hispânia Visigótica. Tariq, após derrotar o rei Roderico e notar a fragilidade e a decadência do Reino Visigodo, decidiu tomar a Península para o Califado Omíada, iniciando assim a conquista da maior parte do território, à excecão das Astúrias, no Norte, região montanhosa que os árabes e berberes não tinham interesse em adquirir por ser inóspita, extremamente pobre, se apresentar como um problema administrativo até mesmo para os visigodos.

Como quase toda a população era cristã há cerca de quatrocentos anos e os conquistadores não tinham tanto, ao menos inicialmente, a iniciativa imediata de proselitismo, os omíadas concederam aos cristãos andaluzos estatus de dhimmis, que em árabe quer dizer “protegidos”, com direito a praticarem e manterem sua fé, templos e instituições. Diversos pactos regionais foram selados, ao mesmo tempo que muitos nobres visigodos se converteram voluntariamente ao Islã, querendo assegurar suas terras e nobiliarquia nesta nova direção, sendo os mais famosos os ibn Qasi, de origem romana. Um desses pactos foi firmado com Teodomiro de Oirihuela, nobre, cujos termos visavam garantir a tolerância e livre prática de culto dos cristãos e também dos judeus no Al-Andalus, uma novidade, uma vez que no finado Reino Visigodo simplemente não havia liberdade de culto: qualquer que fosse a religião do Rei, esta era forçada aos súditos.

O ritmo de islamização do Al-Andalus é matéria de profundo debate e controvérsia: enquanto alguns autores sugerem uma islamização rápida e efetiva, de modo que pela virada do milênio do ano 1000 adiante os muçulmanos representassem uma maioria na Península Ibérica, outros autores sustentam que as coisas não foram bem assim, postulando, em seu lugar, uma islamização lenta e mais “reservada”, isto é, mais restrita às classes mais altas e elitizadas – oficiais, funcionários públicos, burgueses e nobres – do que uma bem-distribuída islamização das massas. Isto não exclui, é claro, que o povo também tenha se convertido em grandes números; a questão aqui é a velocidade e a intensidade com a qual esse movimento em direção ao Islã penetrou nas diferentes camadas da sociedo hispânica, seguindo-se à conquista de Tariq ibn Ziyad do moribundo Reino Visigótico de Toledo.

Como sabemos, e já vimos em um recente artigo, a conquista muçulmana do Reino Visigótico seguiu-se do “casamento” literal dos nobres e militares árabes e berberes com as nobres e campesinas mulheres locais, dando origem a um período de casamentos inter-étnicos e inter-religiosos prevanentes no que viria a ser o Al-Andalus. Como também vimos, eram comuns as conversões, nesse contexto e em outros, ao Islã, tanto por conversão sincera quanto or conversões políticas e de conveniência, tendo em vista não a segurança por parte de famílias nobres hispânicas de seus domínios, mas também uma ascensão social e alianças com os novos donos-do-pedaço.

Apesar desse debate, no entanto, até agora a visão mais plausível – a de uma islamização lenta e tardia -, como proposta por autores como Richard Buillet foi justamente a de um movimento progressivo e descendente de expansão do Islã, primeiro fincando-se entre a nobreza e militaria de alta patente, descendendo pelas classes médias até chegar ao povo.

Isso parece ser amparado pelo fato de que, apesar da conversão, muitos muladis (hispânicos conversos) persisitiam em continuar praticando costumes pré-islâmicos nos mais diversos espectros da vida, tais como descansar aos domingos, geralmente não usarem turbantes nem chapéus e as mulheres não darem tanta importância ao uso do véu.

Pode-se dizer que tendo em vista a correção dessas práticas e o estabelecimento firma do Islã em Al-Andalus que, por volta da metade do século IX ec., o jurista berbere Yahya ibn Yahya al-Layti influenciou o Emir Abdurrahman II (822-852) a estabelecer a madhab (escola de jurisprudência) Maliki (a madhab dos berberes e norte-africanos num geral) como a escola do Islã andaluzo, sendo esta escola conhecida por seu maior pragmatismo e conservadorismo, além de relativa austeridade.

A sociedade moçárabe

A maioria da população moçárabe residia no campo, pelo menos à época da conquista omíada. Tempos depois, apesar da falta de relatos sobre a demografia, parece-nos que a situação continuava a mesma, apesar da já sabia forte presença moçárabe também nos centros urbanos andaluzos, uma vez que as regiões montanhosas – em especial a das Alpujarras – seriam referenciadas como “fortalezas” dos cristãos hispânicos, tornando-se, de certa forma, literais fortalezas com as rebeliões que viriam eclodir e que encontravam nessas populações sua principal fonte de poderio militar insurrecionista.

Pouco após a conquista omíada, logo nos primeiros séculos de reinado muçulmano sobre a Hispânia, somos confrontados com relatos, tanto de cronistas muçulmanos quanto de cronistas cristãos, sobre uma sociedade não apenas diversa, mas profundamente tolerante e pacífica no que concerne a coexistência, bem diferente do que muitos pseudo-historiadores e polemistas ideológicos modernos tentam pintar, colocando os quase mil anos de Al-Andalus como “anos de opressão” islâmicos sobre os cristãos hispânicos. Bem longe disso, os emires adotavam políticas que garantiam a manutenção de um grau elevado de autonomia aos dhimmis cristãos (e judeus também), como o direito de serem julgados segundo suas próprias leis; para tal, eram apontados, dentre as comunidades, um “comes”, uma espécie de arauto da comunidade junto às autoridades muçulmanas, responsável também por atuar em conjunto do Forum Iudicum, um instituição visigótica que fora preservada (ao menos nos primeiros séculos) pelos omíadas; o juiz da comunidade como um todo era chamado qadi al-nassara (“juíz dos cristãos”), que era responsável, também, por acompanhar a coleta da jízia (o imposto aos não-muçulmanos); ambos os cargos eram apontados pelos emires. Um grande pioneiro dessa administração liberal em termos de autonomia comunitária foi, como nos conta a Crónica Mozárabe, o governador Uqba ibn Hajjaj al-Saluli, que exerceu seu cargo, apontado pelo oficial egípcio Ubayd Allah ibn al-Habhab, de 734 até 740. Uqba era conhecido por seu zelo administrativo e medida anticorrupção, sendo o executor desse modelo autonomista que vigoraria por muito tempo no Al-Andalus.

O Forum Iudicum não foi, todavia, a única instituição a ser preservada dentre os moçárabes: a Igreja com toda sua cultura eclesiástica hispano-visigótica, com sua hierarquia clerical, suas regiões episcopais e paroquiais (embora por algum tempo muitas sés tivessem ficado vacantes até que fossem apontados novos portadores para seus báculos) e seu rito à época (o Ocidente cristão não estava uniformizado em questão de ritualística: o rito latino era dividido em ritos regionais, como o bracarense nas terras lusitanas, os diversos ritos célticos nas Ilhas Britânicas, o rito gallicano na região da atual França e, na Espanha, o rito moçárabe). Não é de se espantar que, dado ótimo tratamento pelas autoridades muçulmanas, muitos membros do clero moçárabe passaram também a ajuntar-se das autoridades muçulmanas, tornando-se os “colaboradores” da administração omíada; um caso célebre foi um certo abade chamado Sansão que, conhecedor da língua árabe, atuava como intérprete para a corte do emir. Além de terem autonomia considerável, os dhimmis cristãos não estavam sujeitos a políticas descriminatórias/segregacionistas: não precisavam se distingui entre si nem residir em áreas demarcadas, nem era seu contato com os muçulmanos de alguma forma limitada, fato esse que, dando-se logo no início da convivência entre as duas fés, marcaria a cultura popular de Al-Andalus, profundamente eclética e “misturada” em si; o resultado eram cristãos e muçulmanos frequentando as mesmas lojas e festivais e dividindo mesmos espaços públicos, a ponto de dividirem até mesmo a mesma água para os afazeres, como nos é narrado as anotações de dúvidas jurisprudenciais islâmicas da época, cuja shuyukh (comunidade de sheykhs) tinha que dar respostas para questões que poderiam escandalizar muitos juristas mais conservadores e ortodoxos.

Esse contato amistoso dos cristãos moçárabes com os muçulmanos andaluzos produziu efeitos bem diversos: um deles foi o ressurgimento de antigas crenças, declaradas heresias pela Igreja-Mãe de Roma, que desafiavam o credo estabelecido como sendo “ortodoxo”, como o sabelianismo, que estipulava que as pessoas da Trindade eram manifestações finitas e específicas de um único Deus, além também do adocionismo, que estipulava que Jesus de Nazaré, tendo nascido “um humano qualquer”, fora “adotado” como filho de Deus. Essas ‘heresias’ causaram preocupação no Papa Adriano I e nos bispos asturianos e carolíngios.

Outro fenômeno religioso curioso foi o dos “Mártires de Córdoba”, que teve sua principal ocorrência idos da metade do século IX, apesar de ter ocorrido com menos intensidade em outras épocas andaluzas, também. Nesse movimento, cristãos de todos os backgrounds (clérigos e leigos, homens e mulheres, camponeses ou não) decidiram “voluntariar-se ao martírio” nas mãos das autoridades muçulmanas através de insultos propositais ao Profeta Muhammad e ao Islã, ofensas essas que acarretavam pena capital. Estranhando ou mesmo apiedando-se dos réus, as autoridades públicas decidiram dar aos tão mal-educados cristãos uma oportunidade de retratar-se antes de tomarem sobre si a pena capital. Dentre os motivos especulados como motivação para atitudes tão insensatas por parte de cristãos comuns, estava um fenômeno que pode ser reconhecido mesmo hoje, na era moderna: o a ascensão do fanatismo como resposta ao que alguns podem perceber como “degeneração” da sociedade e da religião. Como já vimos mais acima, a sociedade moçárabe logo tornou-se profundamente ‘orientalizada’, com cristão moçárabes se vestindo à moda oriental, à semelhança de seus vizinhos (e parentes) muçulmanos, praticando a circuncisão tal qual os muçulmanos, e fmuitas vezes também falavam o árabe e observavam uma cada vez mais crescente integração coexistencial e cultural entre moçárabes e o muládis, principalmente, além de árabes (e, em menor grau, berberes, uma vez que estes eram o grupo mais conservador dentro de al-Andalus). Tal integração passava da esfera civil e leiga adentrando as co portas dos santuários cristãos: como já vimos, algumas ‘heresias’ ressurgiram, e outras tomaram forma, mas acima de tudo, os diferentes bispos e presbíteros acabavam, às vezes, adotando posições heterodoxas dentro de sua tradição cristã latina, como foi o caso do bispo moçárabe Hostegensis de Málaga, chamado por fontes eclesiásticas de “inimigo de Cristo” (hosti Iesu) por dizer que Jesus de Nazaré não havia se formado no ventre de Maria, mas em seu Coração, negando assim o dogma católico-latino da “encarnação divina”. Envolveu-se em debates com o já citado abade Sansão, próximo dos omíadas, sendo posteriormente acusado de “herege islamizante”, ecoando os debates e anatematizações dos primeiros séculos de bagunça do Cristianismo, onde diversas posições, seitas e indivíduos gritavam para ver quem falava mais alto até chegar aos ouvidos do Imperador, para que este patrocinasse sua posição. Isso, porém, acontecia na Hispânia do século X (depois do primeiro fenômeno dos “mártires voluntários”, demonstrando que o ‘sacrifício’ destes de nada serviram).

Além dessa “infiltração islâmica” “percebida” por cristãos conservadores (como hoje muitos falam de uma “infiltração maçônica”), os padres moçárabes começaram a deixar de vestir o hábito para utilizarem roupas civis comuns. Do mesmo modo que hoje em dia muitos cristãos que se dizem conservadores ou auto-intitulam-se “tradicionalistas” olham com horror a famílias católicas mistas (como havia no Al-Andalus, e a maioria dos “mártires” cordovenses provém destas famílias mescladas), para a falta de padres usando hábitos e colocal a culpa desses “liberalismos” nas mãos de um suposta infiltração maçônica na Igreja, os moçárabes reacionários da época colocavam a culpa do relapso e liberalismo latente de sua comunidade numa “infiltração islâmica na sua igreja”, preparando, assim, um caminho de maior devoção fanática como resposta, seguindo o suposto exemplo dos primeiros mártires do Cristinismo à época do Império Romano: rebelião (que falaremos sobre adiante) e provocação voluntária à morte.

A reação dos juízes islâmicos foi uma mistura de desprezo e piedade pelos sem-noção que se apresentavam a eles pedindo por martírio. Os juízes, no entanto, não poderia fazer muito para salvá-los além de oferecer-lhes chances de retratação antes de de fato aplicarem a pena devida às suas ofensas contra o Islã e seu Profeta. O qadi (juiz) maior de Córdoba, Aslam ibn Abdullah al-Aziz (exerceu sua função entre 913-922 e 924-926) narra-nos o caso de um cristão que, tendo vindo a ele pedindo-lhe para que lhe passasse ao fio da espada a fim de emular a Cristo, fora embora para casa depois de receber uma poucas e boas açoitadas na lombar.

Um outro exemplo, porém, destacado deste contexto cordobês e também mais tardio (ano de 953) foi o caso de uma embaixada do Imperador Germânico Otto I, qu consistia em cartas escritas por seu irmão, o Arcebispo de Colônia, que degradavam o Islã. O chefe da embaixada, um monge de nome Johan, esperava ser martirizado nas mãos dos andaluzos. O clero moçárabe, no entanto, preveniu o Califa de Córdoba de receber a embaixada devidamente e ler o conteúdo das cartas, iniciando uma série de discussões com os clérigos moçárabes sobre a “situação vergonhosa e preocupante” dos cristãos andaluzos. O bispo moçárabe de nome Ioannes argumentou com Johan que a situação dos moçárabes era que faziam o que podiam para sobreviver e viver em paz com seus senhores muçulmanos, argumentando também que “os pecados de nossos ancestrais trouxeram o ocaso de uma governança pagã sobre nós; estes, porém, nos permitem praticar nossa religião, por isso obedecemo-lhes em tudo quue não afete a fé cristã.” Já pode ser notado aí uma grande suspeição por parte do resto da cristandade latina contra os cristãos moçárabes, como sendo “aculturados” ou, em opiniões mais radicais, “colaboracionsitas”, o que equivalia a chamá-los de “traidores” do cristianismo.

Esses medos não eram, como pudemos e poderemos ver, infundados: a sociedade andaluza estava em constante processo de arabização, criando uma cultura única e híbrida. Após o fim das rebeliões na segunda metade do século X, o processo de aculturamento e sincretização deu uma alavancada, com até mesmo bispos moçárabes adotando nomes islamo-árabes, como o caso do bispo de Elvira, Abdelmalik ibn Hassan e o próprio bispo de Sevilha, Abbas ibn al-Mundhir. Os jovens moçárabes da época aprendiam o árabe para tentarem ingressar na máquina pública e obter vantagens, uma vez que o governo muçulmano empregava muitos dhimmis na sua admnistração, tanto cristãos quanto judeus. Esse estudo e interesse pela língua árabe foi acompanhado pelo interesse em literatura arábica, interesse esse que não se restringiu apenas em ler, mas evoluiu para o ‘praduzir’: a partir do final do século IX, começaram a surgir muitas obras cristãs em romance-árabe, geralmente dedicadas a temas religiosos cristãos, como traduções dos Evangelhos, Salmos e das Cartas Paulinas, além de tratados de apolégtica e polêmicas, não raramente direcionadas ao Islã. Uma dessas traduções, a primeira conhecida, foi feita por volta de 889, uma tradução do Saltério Bíblico feita em conjunto pelo bispo de Córdoba, Valencio e seu redator, Hafs al-Quti (“Hafs o Godo”, aludindo sua origem germano-visigótica, possivelmente um membro da nobreza). O mais conhecido tratado moçárabe, no entanto, parece ser o Calendario de Cordoba, um híbrido de tratado astronômico árabe e calendário litúrgico cristão (que alude, algumas vezes, a temas e festivais pagãos pré-cristãos, como As Fogueiras de São João, chamado também no tratado de al-Ansara, o solstício de verão).

A respeito da influência da cultura islâmica sobre os cristãos da Ibéria medieval escreveu o contemporâneo padre Álvaro de Córdoba (800-861):

“Os cristãos amam ler os romances e poemas dos árabes; eles estudam os teólogos árabes e seus filósofos, não para refutá-los, mas sim para aprimorar mais elegante e eloquentemente seu árabe. Onde estão os estudiosos que agora leem os comentários em latim das sagradas escrituras, ou que estudam os evangelhos, profetas ou apóstolos? Oh! Todos os cristãos talentosos leem e estudam com entusiasmo os livros árabes; eles reúnem grandes e dispendiosas livrarias; eles veem a literatura cristã como indigna de sua atenção. Eles esqueceram seu idioma. Para cada um que pode escrever uma carta em latim para um amigo, há milhares que conseguem se expressar em árabe com elegância, e escrever melhores poemas nesta língua que os próprios árabes.”

 

Os fenômenos dos mártires de Córdoba, no entanto, primeiro aconteceram a um evento que está também profundamente ligado com a questão de tensão sócio-religiosa e reação, que foram as revoltas contra os omíadas na época dos emires Muhammad I até Abdurrahman III, na qual até mesmo hispânicos muládis (muçulmanos) participaram, porém por diferentes motivações e diferentes cenários, unindo-se ocasionalmente em manobras pragmáticas. Como vimos mais acima, a população moçárabe era especialmente forte no campo e em áreas montanhosas, que foram justamente as regiões mais afetadas pelas revoltas. Nessas revoltas contra os omíadas, a principal foi aquela do muládi Omar ibn Hafsun de Bobastro. Junto a alguns muládis e moçárabes da região, Omar organizou uma revolta na região de Málaga contra o emir al-Mundir (886-888). Atuando como um senhor feudal independente dentro do Al-Andalus e amparado por uma extensa rede de fortalezas ocupadas por seus homens e seus aliados, como descrito na obra Historia de los jueces de Córdoba do cronista andaluzo al-Jusani, Omar ibn Hafsun aplicava a coexistência pacífica andaluza de maneira um tanto maldosa: junto de seus regimentos de muçulmanos e, sobretudo, cristãos, atacava as duas comunidades tendo em vista principalmente o saque. Ibn Hayyan, cronista andaluzo, nos relata que “eram cristãos a maioria dos homens de ibn Hafsun”.  Esse fato foi o que provavelmente levou ibn Hafsun a apostatar do Islã e se converter ao Cristianismo em 899, para sedimentar ainda mais seu apoio entre os moçárabes. Essa atitude, no entanto, acabou por minar o apoio de seus aliados muládis, que o abandonaram aos montes, abrindo caminho para que em 912, finalmente, o emir Abdurrhman III desferisse fatais golpes em seu jugo regional pouco antes de sua morte, em 917.

Nos séculos seguintes, os moçárabes encontrar-se-iam numa encruzilhada: com a derrocada do governo unificado de Califas que lhes havia dado não apenas segurança, mas protagonismo político, somava-se os avanços dos s cristãos do Norte da Península, dos recém-formados reinos de Leão, Castela, Aragão, que tinham muita desconfiança e certo preconceito contra os moçárabes. Era impossível que, nessa situação, muitos moçárabes não sonhassem com uma “libertação” pelos nortenhos, fato esse que somado ao avanço, despertava profunda desconfiança dos novos senhores de terras andaluzas: os Taifas.

Durante esse período, o poderio muçulmano viu-se fragmentado em diversas unidades independentes entre si chamadas Taifas, muitas das quais mantinham inimizades com a outra e não raramente entravam em conflito militar. Esse período, também, marcou o apogeu do poder muládi: com as taifas, os senhores regionais muládis ascenderam ao poder, ilhando os árabes e berberes em seus tradicionais centros de poder como Córdoba e Sevilha.

Foi também nesse período que, ofendidos pelas rebeliões moçárabes, em especial pela traição de Ibn Hafsun, a atitude dos governos muçulmanos – e dos próprios cristãos, também – começou a mudar. Os alfaquís (juristas islâmicos em matérias religiosas) cada vez mais exortavam os muçulmanos a se apartarem de maneira “segura” (isto é, não se segregarem totalmente, mas não terem contatos desnecessários); “É melhor que não te associes com alguém que não professa a mesma religião que a sua […] Não há inconveniente se lhes responde com palavras amáveis, desde que elas não magnifiquem [ao não-muçulmano] e o coloquem numa posição acima da tua […]” são as palavras do alfaquí Abu al-Hassan al-Qabisi (935-1012). Do outro lado, os cristãos, especialmente os clérigos, foram proibidos por ordens episcopais por bispos como Eulógio e Paulo Álvaro de”lerem o ‘livro árabe’ [isto é, o Alcorão] exceto para ‘refutá-lo’.” Tal proibição circulou junto de uma cópia das atas do Conclio de Cartago de 256 e.c que proibia os bispos de “lerem as escritura dos ‘gentios’ e dos hereges, exceto se houver necessidade de refutá-las”. Apesar da situação de certa tensão entre o colegiado de ambas as religiões, o povo em si não se deu muito ao trabalho de ouvi-los, continuando com suas práticas sincréticas. Foi nesse contexto próximo à virada do milênio quando, entre 948 e 949, viajou pela terra de Al-Andalus o iraquiano Ibn Hawqal, que relata as condições de vida dos camponeses moçárabes: dentre outras coisas, ele cita o fato curioso destes “camponeses europeus e de confissão cristã” “fazerem rebeliões e encastelarem-se”, sendo difícil para as autoridades tomarem suas fortalezas de si senão “matando um ao um”. O relato de Ibn Hawqal, no entanto, parece nos falar de uma situação um tanto corriqueira pelas terras andaluzas.

Em meados do primeiro século dos anos 1000, tomou conta do Al-Andalus o movimento religioso reformista um tanto rigoroso dos Al-Murabitun, ou Almorávidas, que logo provaram que não vieram para brincadeiras. Convidados à Península Ibérica pelos reis muçulmanos locais das exauridas por guerras internas e externas taifas, os almorávidas queriam reformar o Islã através de posturas que hoje chamaríamos sob o epíteto de “puritanas”, criando uma sociedadeque seguisse sobriamente o Alcorão e a Sunnah, passando por cima de qualquer um que se opusesse – seja ele muçulmano ou cristão – com sua máquina militar berbere. A nós chegam, relatos que já em 1106 foram enviados alguns moçárabes da região de Málaga para  o Marrocos, provavelmente alguns daqueles camponeses insurretos que Ibn Hawqal descreve em seus escritos.

Os berberes, o grupo que sempre fora o mais conservador dentre os muçulmanos do al-Andalus, agora governavam aquelas terras. Não demorou para que os alfaquís extendessem a lista de proibições aos muçulmanos com relação aàs relações sociais entre a ummah e os cristãos, e eles, desta vez contando com o respaldo do Estado fariam-se ser ouvidos. Os alfaquís almorávidas não apenas procuraram segregar as comunidades, mas elevar o status do muçulmano e criticar a cultura sincrética popular existente: clamaram ao Estado que coibisse os fetivais ‘escandalosos’ dos cristãs e publicaram fátuas exortando os muçulmanos a não só não comemorarem datas festivas junto de cristãos (e judeus), mas também não integrarem costumes cristãos aos seus próprios, como comemorar o dia 27 de Ramadã com torrões e frutas, assim como faziam os cristãos no Natal e Ano Novo. Os cristãos também foram diretamente alvos dos alfaquís: eram criticados por hipocrisias, como o fato de padres não poderem se casar mas “receberem mulheres em privado” e “não se circuncidarem enquanto comemoram o dia da circuncisão de Cristo em Janeiro.” Além disso, os almorávidas foram os responsáveis por oficializar em Al-Andalus a escola de jurisprudência (madhab) Maliki, conhecida por ser mais conservadora (de certo modo) e também mais pragmática, além de sera escola dominante e praticamente absoluta dos berberes e do Norte da África da Líbia até o Marrocos.

Por sua postura austera e inflexível, por muito tempo os almorávidas foram tratados pelos historiadores como “proto-wahabbitas”, puritanos que desprezavam a arte  e a erufição e dedicavam-se ao legalismo e à militaria. Hoje, sabemos que não era nada disso: durante o período almorávida, o sufismo andaluzo começou a  caminhar para uma era dourada, dando grandes nomes ao sufismo, a filosofia, a astronomia e tantas outras ciências. Também ao contrário do que outrora se pregava na academia historiográfica moderna, os almorávidas patrocinaram, sim, as artes, a poesia e a arquitetura, principalmente a religiosa. De certa forma, o domínio almorávida foi o princípio do fim: a “reconquista” estava prosseguindo, e a desconfiança pairava no ar mais do que nunca; os tempos de tolerância irrestrita haviam passado e agora, se os moçárabes dessem um passo em falso, poderiam ser o último.

O passo falso veio, em forma de aberta traição. Alfonso I de Aragão, filho de Sancho Ramírez e conhecido como “O Combatente”, recebeu em seu palácio em Saragoça um documento alegadamente enviando por cristãos moçárabes, súditos de Granada, pedindo-lhes ajuda frente a “opressão” dos almorávidas (tratando-se de impostos mais elevados). Neste relatório, os moçárabes prometiam ajuda à uma possível invasão aragonesa, com a sublevação de mais de 12 mil homens que ajudariam as tropas de Alfonso quando este entrasse em Al-Andalus. Acudido pelos gananciosos membros de sua corte, ávidos para saquear a riquíssima Granada, Alfonso partiu de Saragoça em 30 de Setembro de 1125,  adentrando no território andaluzo e atacando os postos dos almorávidas com a prometida ajuda dos cristãos moçárabes locais. Alfonso chegou a atacar diversas cidades e fortalezas, matando indiscriminadamente muçulmanos com a ajuda de seus milicianos moçárabes por toda a zona rural, deixando muitos cadáveres pelo caminho. Porém, sua empreitada não foi tão bem sucedida quanto planejara, sendo obrigado a passar o Natal na localidade de Cenete. O governador do Al-Andalus, Abu Tahir Tamin, tomando notícia da traição de seus súditos cristãos, pediu por reforços ao Norte da África, que chegaram a Granada a tempo, quando Alfonso levantou cerco à cidade. Alfonso, desconcertado, jogou a culpa em cima dos moçárabes que os haviam chamado, ao que foi respondido pelo despero de um de seus lídes, Ibn Callas, dizendo que não poderiam voltar atrás e que a resposta almorávida certamente não seria doce. Com um imenso exército almorávida de quase 50 mil homens em seu encalço, Alfonso se retirou, saqueando e matando tudo pela frente na volta também, para não voltar à Aragão de mãos vazias. Surpreendentemente, Alfonso conseguiu derrotar as tropas almorávidas e, chegando às praias de Tarifa em 1082, entra com seu cavalo no Mediterrâneo, num gesto simbólico. Após isso, porém, sofre derrotas pesadas nas mãos dos almorávidas, e regressa então a Aragão, levando consigo cerca de dez mil moçárabes.

Como era de se esperar, a reação almorávida frente à conspiração e traição dos seus súditos cristãos moçárabes, que tanto haviam sido bem-tratados no que era entendido na época como direito de um povo conquistado, e protegidos pelo poder público por séculos, foi amarga. No outono de 1126, o Emir Ali ibn Yusuf ordenou a deportação de um número indeterminado de cristãos moçárabes para o Norte da África, no Magrebe, mais especificamene no Marrocos atual. Essas famílias, vindas majoritariamente das regiões Córdoba, Granada e Sevilha, foram então transportadas através do do Mediterrâneo para sua nova casa, com a maior parte de seus bens e propriedades confiscados. Os devotos almorávidas, no entanto, não tomariam tal decisão ante seus protegidos dhimmis antes de ampararem a mesma na jurisprudência islâmico, sendo apoiados em peso por muitos alfaquís. Um deles, Abu al-Walid ibn Rush, declarou ao emir que ao conspirarem, sublevarem-se, aliarem-se e se juntarem aos aragoneses na matnça de muçulmanos, os moçárabes rasgaram seu status de protegidos, podendo ser sujeitas às penas então estipuladas de deportação e confisco de bens.

Ante a crueldade e truculência costumeira da época medival, onde massacres eram respondidos com massacres, é mais que notável a punição branda e civilizada – para não dizer misericórdia em si – dadas pelos almorávidas aos moçárabes, que não hesitaram em levantar-se contra os soberanos da religião que sempre lhes tratou bem para lançarem-se ao massacre de seus vizinhos e compatriotas. A bondade desmedida dos “bárbaros” e “puritanos” almorávidas, no entanto, não parou por aí: ao estabelecerem-se no Marrocos, os  moçárabes construíram uma igreja que existe até hoje: a Igreja de São Pedro, originalmente chamada “Catedral dos Três Santo”, construída a pedido da comunidade, cujo pedido foi acatado. O alfaquí berbere Ibn al-Hayy publicou uma fátua assegurando que, mesmo degredados, era direito inalienável dos cristãos erigirem templos para si onde quer que se estabelecessem.  Além disso, os moçárabes não ficaram à esmo: foram empregados pela administração local, tendo experiênciana agricultura, em obras hidráulicas e sendo empregados como milícias de proteção locais, também. Parece que o puritanismo dos almorávidas era realmente uma pura devoção correta, que seguia à risca os principais preceitos do Islã: a misericórdia e a tolerência, mesmo mediante ingratidão sangrenta.

O fenômeno dos Almorávidas foi substituído por um movimento bem mais radical e bem mais particular, este sim não apenas puritano, mas extremista, detentor de uma visão sectária bem particular dentro da História Islâmica: os Almóadas. Crendo serem os preparadores do reinado universal islâmico do al-Mahdi (‘’O Orientado’’, figura apocalíptica de aspiração messiânica no Islã), os almóadas definitivamente aboliram a dhimma (a instituição de proteção das religiões não-islãmicas): onde quer que conquistassem, davam a opção aos judeus e cristãos de converterem-se ao Islã como entendido pelos almóadas; se não o fizessem, poderiam imigrar para terras cristãs; ou se não, deveriam encarar o carrasco (muçulmanos não aderentes sua teologia também eram perseguidos). A conquista de Sevilha em 1147 pelas tropas do líder almóada ibn Tumart provocou um “salve-se quem puder” junto de um “corram para as montanhas’ entre os moçárabes e judeus. No final, com a maioria dos moçárabes refugiando-se no nos reinos cristãos do Norte, e tanto o Magrebe quanto o Al-Andalus ficaram com uma população pequena de cristãos, com a uns poucos esparsos vivendo no campo, escondidos, e nas cidades restando apenas as famílias ricas de judeus e moçárabes que fingiram sua conversão ao Islã. Mas um fator interessante é que, passada a primeira geração de ideólogos almóadas, estes passaram a seguir um Islã mais normativo, mantendo inclusive uma comunidade cristã ibérica em sua capital Marraquexe, que lhe fornecia cavaleiros treinados no estilo de combate dos reinos cristãos.

No mesmo ano, Lisboa foi tomada de assalto pelos portugueses. Os azarados dos moçárabes da cidade, tidos como “miscigenados” pelas tropas assaltantes em virtude de seus costumes árabes e coabitação secular com os muçulmanos, foram massacrados junto destes, e seu bispo foi executado por tropas cruzadas de francos, ingleses, alemães e flamengos que somaram-se aos portugueses para tomar o que seria a futura capital portuguesa. Relatos dos assaltantes, inclusive, narram terem ficado confusos ao veres “árabes” abraçando-se a uma cruz e invocando o nome da Virgem Maria em meio ao saque da cidade. Esse episódio mostra um preconceito e até desprezo pelos olhos dos cruzados ao que percebiam como “degeneração”. Não respeitavam os direitos da comunidade cristã existente, que se mantivera fiel à sua religião durante os anos de domínio muçulmano. O bispo moçárabe assassinado e substituído por Gilberto, um clérigo inglês que acompanhara os cruzados. Após a violência, muçulmanos e judeus abandonaram a cidade, e relatos da época falam inclusive de moçárabes sendo feito escravos pelos portucalenses como se fossem muçulmanos.

Hoje em dia, o rito moçárabe pré-gregoriano, original e visigótico da Hispânia, é feito apenas em duas igrejas na Espanha atual: uma capela da Catedral de Toledo e na Igreja Reformada Episcopal de Madrid, que usa uma versão um pouco modificada do rito moçárabe original. Além da arquitetura e das histórias, isto foi tudo o que restou na modernidade do cristianismo moçárabe, dissolvido pelos almóadas no sul e pelo gregorianísimo no norte da Península.

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