Uma rampa construída com esforço coletivo por skatistas, derrubada por uma canetada burocrática, expõe muito mais do que uma disputa sobre o uso de um espaço público. A ação da Administração Regional do Sudoeste, que demoliu a rampa erguida na pista Sukata, no Cruzeiro, não é um episódio isolado — é a face cotidiana da Brasília que insiste em funcionar como um feudo burocrático, onde o poder se herda e se protege com zelo, ainda que isso signifique atropelar o senso comum e o interesse público.
Brasília é marcada por uma máquina estatal onde sobrenomes valem mais que ideias. Os cargos públicos, mesmo os de menor expressão, muitas vezes circulam entre famílias como herança, perpetuando uma casta funcional que enxerga qualquer gesto popular como ameaça. A “síndrome do pequeno poder” se manifesta em cada decisão tomada sem diálogo, em cada aviso de interdição, em cada “não pode” que ignora o contexto e criminaliza a criatividade. A destruição da rampa construída de forma comunitária revela exatamente isso: um aparato que prefere a paralisia à participação.
A justificativa da administração — ausência de autorização, riscos de segurança e perda de garantia da pista — poderia até soar razoável, não fosse a completa desconexão com a realidade do espaço e das pessoas que o ocupam diariamente. A cultura do “faça você mesmo”, tão presente no universo do skate, é também um exercício de cidadania. A pista não foi vandalizada; ela foi ampliada, cuidada, transformada a partir das necessidades reais dos usuários. Em vez de acolher o gesto, o Estado o puniu.
Essa resposta autoritária deslegitima o protagonismo comunitário e reafirma uma lógica de dominação tecnocrática. Para a burocracia brasiliense, o cidadão ideal é aquele que não se move, que aguarda eternamente a boa vontade do governo. Qualquer movimento que escape dessa passividade é visto com suspeita. E o poder, mesmo o mais insignificante, é exercido com rigidez quase caricatural — como se o fiscal ou o gestor estivessem defendendo o Palácio do Planalto, e não um simples pedaço de concreto numa pista de bairro.
O caso da pista Sukata poderia ter sido uma oportunidade de diálogo, de aprimoramento conjunto, de estímulo à apropriação responsável dos espaços públicos. Em vez disso, reforçou o abismo entre governo e governados. Mostrou, mais uma vez, que a cidade construída para ser símbolo de modernidade democrática se tornou, em muitos aspectos, um retrato fiel do patrimonialismo: herdeiros do poder zelando mais por normas do que por pessoas.
Se Brasília quer ser mais do que o quintal dos cartórios e gabinetes, precisa romper com essa estrutura hierárquica viciada. Precisa enxergar na participação popular não uma afronta, mas uma aliança. Afinal, nenhuma cidade será verdadeiramente pública enquanto seus espaços forem tratados como propriedade de meia dúzia de chefes de repartição e seus descendentes.