Assim funciona a Grande Chantagem: o STF aperta, o Congresso obedece
Há quem ainda trate Brasília como um tabuleiro de xadrez elegante, cheio de princípios jurídicos, ritos democráticos e harmonia entre os poderes. Balela. O jogo real é bruto, subterrâneo e coerente com uma lógica muito simples: quem controla o foro controla a República. E no Brasil, esse controle está concentrado num grupo de onze togados que jogam como deuses de uma mitologia própria — uma mitologia na qual o STF decide quem vive politicamente e quem é destruído.
O mecanismo é conhecido, mas poucos têm coragem de descrevê-lo com todas as letras. Deputados, senadores, ministros, presidente da República — todos, absolutamente todos, são julgados diretamente pelo STF. Crimes comuns, denúncias frágeis, investigações que duram infinitas eras jurídicas. A corte aceita tudo: delação meia-boca, indício requentado, pedido de ofício, denúncia protocolada quase por esporte. Nada é realmente arquivado, tudo pode ser reativado. Os processos dormem, mas não morrem.
E é aí que a chantagem institucional começa. O recado é claro: “você pode até ser eleito pelo povo, mas quem decide seu destino somos nós”. Sempre que uma autoridade resolve tomar posição que incomode a cúpula do Judiciário, uma gaveta se abre, um processo esquecido respira, um inquérito se levanta dos mortos. Não há coincidências — há timing.
Foi exatamente isso que o país assistiu nesta semana. Ontem, a Câmara aprovou o PL da Dosimetria, um projeto que mexe diretamente com condenações impostas pelo próprio STF, especialmente nos casos do 8 de Janeiro. O recado do Legislativo foi simples: “vocês exageraram; nós vamos recalcular as penas”. Menos de 24 horas depois, o Supremo respondeu no estilo que já virou marca registrada: Paulinho da Força, relator do projeto, teve um processo enterrado há dois anos magicamente ressuscitado.
A teoria do domínio do fato, que os ministros tanto desprezam quando aplicada a eles, encaixa-se aqui como uma luva. Não precisa carta assinada, áudio vazado, reunião clandestina. Basta observar a sequência causal: votou contra os interesses do Olimpo? O Olimpo revida. Paulinho ousou contrariar o humor dos togados e, por coincidência divina, seu inquérito de 2018 — sim, 2018 — destrava no dia seguinte.
O caso, que envolve suposta captação ilícita de clientela para ações trabalhistas e uma “mesada” de R$ 100 mil, ficou parado por dois anos no STF. Em 2023, a PF pediu informações. Em 2025, pediu de novo. Nenhuma resposta. O processo estava mais gelado que mármore de templo. Mas bastou um voto inconveniente e, subitamente, André Mendonça publica despacho, movimenta o inquérito e o envia para manifestação da PGR. Timing perfeito. Para quem? Para o STF, claro.
Esse tipo de sincronia não é azar, é método. É como dizer ao Congresso inteiro: “Vimos o que vocês fizeram ontem. Olhem o que podemos fazer amanhã.” E todos ali sabem que, diferentemente de ditaduras tradicionais, onde há tanques e generais, aqui a coerção é silenciosa, limpa, sem barulho de botas. Basta um clique no sistema eletrônico da Corte para que um mandato se torne refém.
Trata-se da pior forma de autoritarismo possível: o autoritarismo judicial. Aquele contra o qual não há apelo, não há instância superior, não há habeas corpus celestial. É o poder sem contrapeso, sem voto, sem risco de perder o emprego. É um Leviatã togado que distribui favores jurídicos e punições processuais conforme a docilidade dos outros poderes.
E quando o Legislativo tenta exercer sua função — como fez ao aprovar o PL da Dosimetria — ele é lembrado imediatamente de quem manda de verdade no jogo. Não é o povo. Não é o voto. Não é a Constituição. É o Supremo Tribunal Federal, que opera como um tribunal oracular, interpretando a lei conforme sua conveniência e punindo quem discorda.
A grande chantagem funciona justamente assim: processos hibernam até o dia em que se tornam armas políticas. E quando viram arma, acertam em cheio não só o alvo, mas a democracia inteira. Porque um Congresso acuado não legisla — obedece. Um Executivo acuado não governa — negocia sobrevivência. E um país inteiro acaba refém de um poder que se colocou acima de todos os outros.
É assim que funciona. E é por isso que nada muda. Enquanto o Brasil aceitar que onze ministros joguem com a liberdade política de centenas de autoridades eleitas, a República continuará sendo uma ficção — e a chantagem, a verdadeira Constituição não escrita do país.






