As lições da Finlândia, que virou paraíso do trabalho flexível

Miika Härkönen não aguentava mais a escuridão dos longos invernos de Helsinque, capital da Finlândia, e perguntou ao chefe se poderia trabalhar remotamente na Espanha por seis meses.

Como sua esposa havia acabado de ter bebê e estava de licença maternidade, a ideia era fazer “home office” em um apartamento alugado em Málaga, onde continuaria trabalhando como gerente sênior de uma empresa de TI, além de poder passar mais tempo com a família.

O chefe se mostrou aberto à ideia depois que Härkönen escreveu uma lista com suas principais tarefas — incluindo gerenciar 20 funcionários — e respectivas soluções para executá-las do seu escritório improvisado.

“Na verdade, funcionou de maneira brilhante, até um pouco melhor do que eu pensava”, diz Härkönen, que agora está de volta ao escritório de Helsinque.

Ele conta que manteve contato com os colegas enquanto estava ausente por meio do Slack, plataforma online para comunicação corporativa, videoconferências e viagens esporádicas para Finlândia.

Ele trabalhava em horário flexível, se certificando de que poderia participar por telefone de reuniões importantes em Helsinque, uma hora à frente de Málaga, enquanto aproveitava ao máximo o clima espanhol, algo que acredita ter ajudado a aumentar sua produtividade.

“Estávamos fazendo caminhadas, trilhas e nadando”, relembra.

“Se distanciar um pouco e ver as coisas sob uma perspectiva diferente… acho que é um ótimo bônus para qualquer pessoa que precisa ou deseja.”

Embora Härkönen tenha sido o primeiro funcionário da empresa a sugerir uma modalidade tão extrema de trabalho remoto e flexível — ele diz que não ficou surpreso quando o chefe concordou.

A Ambientia, empresa de TI em que ele trabalha, tem cerca de 200 funcionários e começou a abrir escritórios regionais menores há mais de 15 anos, como uma resposta à demanda da equipe para reduzir o tempo de deslocamento até Helsinque.

Também incentiva ativamente os funcionários a realizarem alguns trabalhos remotamente, como parte de um esforço para promover a eficiência e criatividade.

De acordo com Jenni Fredriksson-Bass, gerente de RH da empresa, a oferta de modalidades flexíveis de trabalho está se tornando cada vez mais importante para atrair novos talentos.

Miika Härkönen (ao centro) diz que trabalhar na cidade espanhola de Málaga, a mais de 3.000 km de Helsinque, o tornou mais produtivo

A Finlândia é um país pequeno repleto de florestas com uma população de apenas 5,5 milhões de habitantes, mas também é um importante centro tecnológico europeu que, embora seja mais conhecido por ser sede da Nokia, atrai empresas de TI de sucesso, start-ups de games e serviços financeiros digitais.

“Mas nem todo mundo quer viver na agitação de uma cidade grande, onde tradicionalmente as empresas de tecnologia estão localizadas”, diz Fredriksson-Bass.

“É um desperdício não utilizar o talento que você pode ter a cinco horas de distância. Talvez a pessoa possa morar perto de um lago ou de uma floresta, ser acessível e ainda ser capaz de fazer seu trabalho.”

O direito de ajustar o horário

Poucas empresas na Finlândia vão tão longe quanto a Ambientia quando se trata de acolher os funcionários. Mas a flexibilização do trabalho — ainda vista como um privilégio, e não um direito em alguns países — está incorporada à cultura de trabalho da Finlândia há mais de duas décadas.

Isso se deve em grande parte a uma lei, aprovada em 1996, que dá à maioria dos funcionários o direito de ajustar o horário do seu turno, começando ou terminando até três horas mais cedo ou mais tarde do que o estipulado inicialmente.

Em 2011, a Finlândia oferecia os horários de trabalho mais flexíveis do planeta, de acordo com um estudo da consultoria Grant Thornton — 92% das empresas permitiam que os trabalhadores ajustassem seus horários, em comparação com 76% no Reino Unido e nos EUA; 50 % na Rússia; e apenas 18% no Japão.

Desde então, as discussões sobre os benefícios da flexibilização do trabalho se intensificaram em todo o mundo, com um boom de grandes empresas adotando o conceito — como Virgin, PwC e Dixons Carphone —, em paralelo à criação de leis para promover um trabalho mais ágil em países como Austrália e Reino Unido.

Mas a Finlândia parece se manter um ponto fora da curva, graças a uma nova lei relativa aos horários de trabalho. Prevista para entrar em vigor ainda em 2020, oferecerá à maioria dos funcionários em período integral o direito de decidir quando e onde eles trabalham durante pelo menos metade do expediente.

“Trata-se de se adaptar ao mundo moderno”, diz Tarja Kröger, funcionária pública e consultora do Ministério do Emprego e Economia da Finlândia, que ajudou a redigir a lei.

Ela explica que, de acordo com a nova legislação, é esperado que os funcionários trabalhem uma média de 40 horas por semana. Mas isso pode incluir uma infinidade de arranjos diferentes, desde a escolha de dias fixos para ficar baseado “em sua casa de campo ou no seu café favorito” até começar ou terminar o expediente mais cedo, a fim de gerenciar os horários da creche ou conseguir se exercitar ao ar livre enquanto ainda está claro.

É provável que alguns funcionários mais jovens, diz ela, peçam para trabalhar mais horas durante um período fixo para “acumular” dias de folga para viajar.

Seja como for, os empregados e seus respectivos gestores deverão discutir suas expectativas previamente e elaborar um contrato para quaisquer novos arranjos.

Nova legislação vai permitir que os finlandeses terminem de trabalhar mais cedo, podendo aproveitar o dia ainda claro para se exercitar ao ar livre, por exemplo

O argumento óbvio para a mudança na lei, explica Kröger, é que a ampla disponibilidade de tecnologias baseadas em Wi-Fi e na nuvem “permite que você trabalhe [remotamente] da mesma maneira que no escritório” em muitas profissões, o que significa que os funcionários podem assumir mais controle sobre seus horários.

E, segundo ela, o trabalho flexível também apresenta grandes benefícios para os empregadores, que com frequência observam maior eficiência e produtividade da equipe.

“As pessoas são mais produtivas quando o horário de trabalho permite lidar tanto com a vida profissional, quanto pessoal, conciliando as diferentes demandas”, afirma.

Este argumento é reforçado por pesquisas realizadas em diferentes mercados de trabalho em todo o mundo. Um relatório recente do HSBC sobre a indústria de tecnologia do Reino Unido constatou que 89% dos entrevistados citaram o trabalho flexível como motivação para aumentar sua produtividade.

Nicholas Bloom, professor de economia da Universidade de Stanford, nos EUA, encontrou resultados semelhantes em um estudo realizado com mais de 16 mil funcionários de um call center chinês — as pessoas autorizadas a trabalhar de maneira flexível de casa aumentaram sua produtividade em 13% e se ausentaram menos por licença médica.

Enquanto isso, uma pesquisa da empresa americana TINYpulse, de 2016, constatou que os trabalhadores remotos também se sentiam mais felizes e mais valorizados do que funcionários de escritórios tradicionais.

Cultura de confiança

Muitos finlandeses acreditam que o trabalho flexível é tão bem-sucedido no país devido, em grande parte, a uma cultura de confiança profundamente enraizada. Um estudo recente do Eurobarometer mostrou que a confiança dos finlandeses nos conterrâneos é maior do que em qualquer outro lugar da Europa.

Pauliina Alanen (à direita) experimentou o estilo de trabalho do Vale do Silício e da Finlândia - 'Os finlandeses tiram seu horário de almoço', diz ela

Segundo Eero Vaara, professor de organização e gerenciamento na Aalto University, na Finlândia, isso pode ser parcialmente explicado por um modelo de bem-estar social baseado na igualdade e na segurança financeira, juntamente com uma cultura de tomada de decisão consensual que promove a confiança nas instituições.

“Isso tem raízes na história, é algo com o qual as pessoas estão acostumadas — não é algo que surgiu na última década, junto dessas mudanças no nosso padrão de trabalho”, explica.

No ambiente de trabalho, ele acrescenta, essa confiança se traduz em uma expectativa de que a equipe que escolhe trabalhar remotamente ou em diferentes momentos do dia não vai acabar relaxando ou enrolando.

“As pessoas desfrutam de muita segurança… se você fizer as coisas bem, provavelmente será bem tratado, e há processos e procedimentos para lidar com qualquer problema”, afirma.

“Na Finlândia e em outros países nórdicos, temos organizações relativamente planas, pouca hierarquia e pragmatismo, e esses também são ingredientes que tornaram possível a introdução de novos elementos como o trabalho flexível.”

Vida equilibrada

Outro motivo pelo qual muitas empresas já estão dispostas a adotar o trabalho flexível é que os finlandeses há muito tempo buscam o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. Apenas 4% dos funcionários trabalham regularmente 50 horas por semana ou mais, bem abaixo da média no mundo ocidental, de acordo com dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Vaara sugere que essa abordagem esteja ligada a uma ampla variedade de fatores, desde uma forte cultura sindical que protege as jornadas de trabalho curtas até a tradição de dedicar tempo para aproveitar os lagos e florestas.

Dados da União Europeia sugerem que os finlandeses são os que mais se exercitam entre os europeus — e são mais propensos a praticar exercícios ao ar livre do que outras nacionalidades, apesar do clima geralmente severo.

“As coisas estão começando a mudar um pouco — eu sei que muita gente trabalha mais do que deveria —, mas a busca por equilíbrio ainda está no cerne da cultura de trabalho finlandesa”, argumenta Vaara.

No centro de Helsinque, esse pensamento é evidente no maior campus de start-ups da cidade, o Maria 01, um hospital abandonado que foi reformado e abriga hoje mais de 160 pequenas empresas e scale-ups.

Andando de um lado para o outro de short, em um dia de verão excepcionalmente quente, o CEO do centro, Voitto Kangas, conta que, embora algumas empresas inevitavelmente peçam às equipes para fazer hora extra antes de grandes lançamentos, os funcionários são sempre incentivados a aproveitar o tempo livre e tirar férias.

“A maioria de nós acredita firmemente que o tempo gasto no trabalho não é de onde vem todo o esforço e resultado”, argumenta.

“Você deve ter tempo para manter sua saúde em dia, sua saúde mental em dia… Por isso, buscamos esse equilíbrio.”

“Os finlandeses são bastante rigorosos cerca de 40 horas por semana e temos uma hora de almoço. Não é como nos EUA, onde a maioria das pessoas apenas come um sanduíche a caminho da próxima reunião”, concorda Pauliina Alanen, gerente de comunicação de uma empresa de inteligência artificial do Maria 01, que anteriormente trabalhava no Vale do Silício.

“E a maioria das pessoas sai de férias em julho”, acrescenta.

“Nada acontece aqui em julho na [sua] vida profissional. Todo mundo está na sua casa de campo!”

Colaboração e comunicação

O famoso foco da Escandinávia na colaboração e na tomada de decisões consensual também desempenha um papel no desenvolvimento do trabalho flexível na Finlândia.

As organizações empresariais, os sindicatos de trabalhadores e os políticos ajudaram a redigir a nova legislação, que foi aprovada no Parlamento em março de 2019.

Como resultado, houve pouca resistência à proposta, embora alguns representantes sindicais tenham manifestado preocupação em relação à transição para o trabalho remoto, que pode obscurecer os limites entre a vida profissional e privada.

“Há riscos. O empregador pode dar muito trabalho ao empregado, que fica com receio de dizer que não dá tempo de fazer. O funcionário tem que cuidar de si mesmo”, argumenta Anu-Tuija Lehto, advogada da Organização Central dos Sindicatos Finlandeses (SAK).

Ela acredita que, mesmo que os trabalhadores e as empresas tenham acordos por escrito, um horário de trabalho mais fluido ainda pode fazer com que alguns funcionários sintam que precisam “checar e-mails, atender telefonemas e estar sempre disponível”, o que poderia resultar em horas extras não remuneradas.

De fato, pesquisas sobre várias modalidades de trabalho flexível no mundo sugerem essa tendência — pessoas que trabalham em horários irregulares acabam dedicando mais horas ao trabalho do que aquelas que trabalham dentro de um horário fixo padrão.

Eero Vaara argumenta que “a comunicação será o segredo” para as empresas finlandesas se adaptarem à nova legislação, que impõe novas demandas aos gestores para garantir que a equipe esteja cumprindo as tarefas necessárias e se sinta conectada à empresa.

“As pessoas podem não ficar cientes do que está acontecendo com seus colegas, projetos ou iniciativas, ou podem ter a sensação de não serem informadas ou fazer parte daquilo”, diz ele.

E, “na pior das hipóteses”, isso poderia acabar minando os fortes níveis de confiança que permitiram o trabalho flexível prosperar na Finlândia, segundo Vaara.

Pausas para café solitárias?

Outra preocupação importante é em relação ao impacto da perda do contato social proporcionado pelos escritórios, das áreas de convivência para tomar café à oportunidade de compartilhar recursos e equipamentos.

“Pessoalmente, eu prefiro trabalhar no escritório porque gosto de ficar perto da equipe”, argumenta Tiia Paananen, gerente de vendas, enquanto almoça com três colegas em um café ao lado do Maria 01.

Direito de imagem Maria 01
Image caption Mais de 160 start-ups estão localizadas no Maria 01, um antigo hospital reformado no Centro de Helsinque

Ela tem receio de que os espaços de trabalho se tornem “um pouco solitários” se muita gente fizer uso da nova lei de trabalho flexível.

“Por outro lado, há espaços de coworking surgindo por toda a cidade, e [o trabalho flexível] talvez possa dar mais oportunidades para a indústria de lanchonetes e restaurantes. É apenas uma maneira diferente de trabalhar, suponho.”

O boom de espaços de coworking na Finlândia nos últimos anos pode, no entanto, oferecer desafios futuros para políticos e líderes empresariais, na opinião de Vaara.

Segundo ele, a crescente popularidade desses espaços destaca o fato de que a Finlândia está, como muitos países, começando a mudar de uma cultura de empregos permanentes para a chamada gig economy, caracterizada por freelancers, contratos temporários e empreendedorismo.

“Cada vez mais pessoas não terão empregos do tipo que as leis atuais e os contratos com as associações empresariais e sindicatos se baseiam”, explica.

Segundo ele, isso significa que um número cada vez maior de trabalhadores não estará protegido pela legislação vigente — e podem se ver trabalhando com menos flexibilidade do que empregados com contratos permanentes, a fim de agradar seus clientes.

“Podemos estar vendo o surgimento de novos grupos de trabalhadores que estão menos protegidos ou menos conscientes de seus direitos”, avalia.

“Igualmente, os gestores de empresas podem não ter total conhecimento sobre o que é certo e o que não é.”

Apesar dos desafios, Vaara acredita que a Finlândia deve continuar sendo um símbolo do trabalho flexível, com o qual o resto do mundo tem muito a aprender.

“Na melhor das hipóteses, esses arranjos realmente funcionam porque você ainda oferece segurança para os funcionários, mas ao mesmo tempo pode criar condições de trabalho que sejam benéficas para a empresa e que se adaptem à situação de cada indivíduo”, afirma.

“Acho que o que acontece na Finlândia e nos países nórdicos, em geral, é que não são apenas as grandes empresas que oferecem trabalho flexível, você encontra bons exemplos por toda parte. E isso pode melhorar as coisas para todo mundo.”

FONTE: BBC BRASIL

 

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