Por Tiago Lucero
A frase poderia passar batida como mais uma das inúmeras hipérboles que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva coleciona ao longo de sua trajetória política. Mas não deveria. Dizer, em alto e bom som, que “Deus deixou o sertão sem água porque sabia que eu ia ser presidente da República e ia trazer água pra cá” não é apenas um ato de vaidade inflada — é uma revelação perturbadora sobre o modo como Lula se vê e como ele pretende que o mundo o veja.
Essa declaração não é uma gafe, tampouco um exagero retórico inofensivo. É um retrato cristalino de um padrão que já foi visto antes, em outros líderes de raiz autoritária e revolucionária, especialmente os que beberam na fonte do marxismo messiânico: a ideia de que eles não apenas representam o povo, mas que são sua encarnação redentora. Lenin, Mao, Fidel, Chávez — todos eles partilharam dessa percepção: foram “escolhidos”, iluminados, destinados.
A fala de Lula guarda uma pretensão que ultrapassa os limites do egocentrismo. Afinal, é possível ser egocêntrico sem ser desumano. Mas dizer que Deus — sim, Deus — planejou o sofrimento de milhões de nordestinos por séculos apenas para que um homem, ele mesmo, surgisse como salvador, é de um narcisismo tão radical que roça a psicopatia. Um psicopata não é apenas alguém que falta com empatia; é alguém que não consegue conceber a existência do outro senão como pano de fundo para a sua própria narrativa gloriosa.
Lula não está dizendo que trabalhou duro para concretizar um projeto histórico de infraestrutura. Ele está dizendo que o sofrimento do povo nordestino fazia parte de um plano maior para que sua figura brilhasse. Isso não é empatia — é instrumentalização da dor alheia. É a estetização da miséria para enaltecer o próprio ego.
E como toda ideia totalizante, essa visão se ancora em um discurso circular e hermético que é típico da estrutura marxista clássica: o povo alienado, o “salvador” consciente, a luta de classes, o despertar coletivo. O líder se posiciona não apenas como porta-voz, mas como veículo da história, da verdade, da redenção. É o mesmo movimento discursivo que permitiu a Stalin justificar o Holodomor, a Mao sustentar o Grande Salto Adiante, e a Fidel manter Cuba em estado de penúria por décadas. Todos acreditavam, sinceramente, que sabiam o que era melhor — e que a história lhes dava razão antes mesmo de os fatos se manifestarem.
Lula já deixou claro em outras ocasiões que se vê como uma figura quase bíblica. Já se comparou a Jesus, já se referiu a si mesmo como “um milagre”, já disse que foi preso como Mandela. A construção de uma persona mitológica não é casual — é parte de uma narrativa onde não há espaço para autocrítica, nem para dúvida. A verdade é aquilo que ele diz. A realidade é o palco onde ele brilha.
Pior: tudo isso é acolhido com aplausos, como se estivéssemos diante de uma nova parábola, e não de uma aberração lógica e moral. Ninguém parece se escandalizar com o fato de um presidente declarar que compreende os desígnios de Deus a ponto de afirmar que Ele preparou uma tragédia histórica para exaltar sua figura. A crítica política virou “ódio”. A dúvida, “inveja”. A indignação, “falta de gratidão”.
Num país saudável, líderes são cobrados, julgados, relembrados de sua humanidade falha. Num país adoecido pelo culto à personalidade, o líder vira entidade, e toda crítica é heresia. É essa a estrada que estamos trilhando?
Lula pode não ser psicopata no sentido clínico do termo — isso é função de psiquiatras e exames diagnósticos. Mas politicamente, age como tal: incapaz de reconhecer o sofrimento dos outros sem filtrá-lo pela lente do próprio heroísmo. O egocentrismo já seria perigoso. Mas quando se soma a uma ideologia que o convence de que ele é a história, é o povo, é o bem — temos algo muito mais sombrio em mãos.
E isso não se trata apenas de Lula. Trata-se de um sistema que permite e cultiva esse tipo de liderança. Líderes que não governam: encenam. Que não servem ao povo: se servem do povo.
Quando o sertão seco vira trampolim de glória pessoal, algo muito fundamental se perdeu. E talvez, nós, como sociedade, também estejamos perdendo algo essencial: a capacidade de dizer que o rei está nu, e louco.






