“A saída estava marcada para as 18h30 da sexta-feira. Todos os convidados deveriam estar pontualmente na gare D. Pedro II, no Rio de Janeiro, porque o trem chegaria a Brasília às 10h da manhã de domingo, com pontualidade britânica. Isso era questão de honra.”
Uma matéria, publicada na Revista Ferroviária em junho 1968, descreve com bastante clareza a chegada do primeiro trem a nova Capital da República, Brasília. Mais um momento memorável e marcante na história dessa cidade. E baseados nela faremos essa viagem pela história. Então, naquele inverno de 68, o primeiro trem para Brasília rodou pelos trilhos.
Segundo publicado na Revista Ferroviária da época, 5 minutos antes da partida, as cabines já estavam todas ocupadas.
A composição inicial que saiu do Rio era composta por 5 carros sendo, o primeiro para os militares, o segundo para os jornalistas, cinegrafistas e convidados estrangeiros e no terceiro iam técnicos do Ministério dos Transportes. Nos outros 2 carros um era o restaurante e outro onde foram alguns ferroviários.
Foram quarenta horas de viagem que eles enfrentariam da antiga capital da República até a nova, construida e inaugurada no governo JK, 8 anos antes. Todos sentiam-se bandeirantes na viagem pioneira.
Na saída do Rio, quase ninguém prestou atenção aos subúrbios que desfilavam pelas janelas. Era a hora dos conhecimentos, das apresentações e das conversas. Passa um trem apinhado de gente até o teto. O general Elísio Coutinho faz um comentário lacônico: — “O governo devia proibir isso”.
Já no carro restaurante, os jornalistas comentavam a pontualidade, devido à qual, um colega ficara no Rio, por chegar atrasado. Mas nesse momento também surgiu a primeira “crítica.” Só haviam homens neste trem. Militares e civis começavam a falar da mesma coisa, quando apareceram as duas comissárias, vestidas de azul, usando luvas, sorridentes e simpáticas. Estas simpáticas “ferreomoças” de nome, Aline e Lúcia, logo chamaram muito a atenção. Pois, não demorou muito para que todos se apresentassem. Elas foram designadas para atender aos 40 passageiros durante o jantar, no joguinho de baralho e nas rodas onde se tomava um autêntico uísque escocês.
Assim, com euforia geral, eis que aconteceu o primeiro atraso. O jantar ferroviário foi servido num horário fora do comum. Aline e Lúcia respondiam a perguntas do tipo, de onde eram, família, ocupações, etc.
O pioneiro trem, então, faz sua primeira parada, em Barra do Piraí ainda no estado Rio. Uma parada muito rápida de apenas 1 minuto.
Uma hora depois, haviam poucos passageiros no restaurante. Quatro oficiais discutiam sobre a indústria automobilística. Outros encolhiam-se nas poltronas. Às 3h da madrugada, o chefe do trem passa com uma lanterna e anuncia:
“— Daqui a ponco chegaremos a São Paulo. É melhor os senhores irem dormir. Ainda faltam 35 horas…”
Podemos nesse momento abri um parênteses a essa bela história, para lembrar que nessa mesma época, no Japão e na Europa, por exemplo, começava o funcionamento de trens rápidos, como o Shinkansen japonês e o TGV francês.
Já no Brasil, durante a pioneira viagem, não havia ninguém interessado na chegada à Estação da Luz, mas muitos grupos conversavam em voz alta. Um pedido de “não cantem alto quando passarem pelo carro dos generais foi feito pela equipe de bordo. Então, a composição adentra em São Paulo. O trem para na magnífica Estação da Luz, entram os jornalistas paulistas, que não sabiam do pedido de silêncio e ingressam no trem cantando, juntamente com o colega carioca que se atrasara no Rio: — “Se eu perdesse essa viagem o Andreazza ficaria zangado, e com razão”.
Às 3h45, quem dormia foi acordado. O trem passava por Campinas, onde foi feita abaldeação para o trem da Cia. Mogiana. No futuro, quando os passageiros saírem do Rio para Brasília, terão essa parada obrigatória, trocando a Central pela Mogiana. Os engenheiros reúnem os jornalistas para uma explicação coletiva:
“— Os trens da Central trafegam em bitola larga; os de São Paulo para Brasília têm bitola estreita. A ferrovia paulista é menos bitolada que a carioca.”
Aquela mudança também provocou o início da viagem propriamente dita. Agora, com 10 carros e quase 70 passageiros, a composição tinha outra ordem. O carro dos militares era o último e o dos jornalistas passou a ser o primeiro. Um camareiro, elegantemente uniformizado, dava os últimos retoques nas cabines.
Ar condicionado, lençóis novos e um cheiro de eucalipto, tudo convidando ao sono. Mas, apesar disso, a maioria insistia em permanecer no restaurante — “para experimentar o cardápio da Mogiana”. Surgiu um jantar da-madrugada, com bife, frutas, ovos, leite e queijo servidos em mesas enfeitadas com flores de Campos do Jordão. A direção da empresa também havia embarcado em Campinas. A opção entre o restaurante e o dormitório ficava difícil.
As 10h da manhã, depois de passar por Jaguariúna, Mogi Mirim, Tambaú, Santos Dumont e São Simão, pouca gente permanecia acordada. O trem rodava em calma, enquanto o chefe José Benjamim falava orgulhoso dos seus 29 anos de ferroviário:
“— Para mim, essa viagem é uma espécie de prêmio. Sou responsável por 365 toneladas. Se Deus quiser, vamos chegar em paz.”
Lá fora, o interior paulista, com suas plantações de algodão e enormes cafezais, nos quais os trabalhadores acenavam, surpreendidos com a bandeira nacional que ia presa à locomotiva. Todos tinham esquecido, um pouco, o ar pioneiro e ainda estávamos em Ribeirão Preto. O prefeito, o padre, o delegado, crianças com bandeirinhas paulistas e muita gente na estação lembravam aos passageiros que aquela era uma viagem histórica. Eram 11h40 de sábado — hora do almoço.
A cidade de Juçara já estava para trás, quando começaram as entrevistas, no carro restaurante. Elogios ao trabalho, realizado após a revolução de abril, elogios ao ministro Andreazza — “o mais civil dos militares” — , perguntas sobre a construção da ferrovia e sua utilização futura.
O trecho realmente inaugurado seria de Pires do Rio (GO) a Brasília. Quem explicou foi um coronel que, desde o início da viagem, lia o livro “O Desafio Americano”:
“— Isso se chama descobrir o Brasil — disse ele —, ligar pontos que nos conduzem à cidade do presidente”.
O coronel Fernando Allah, membro da Diretoria de Vias de Transporte, agora conta um pouco da história da estrada:
“— Em 1965, o Batalhão Mauá começou o trabalho em Araguari e conseguiu fazer o progresso até aqui. Depois, fizeram-se mais 247 km de ferrovia até Brasília. No total, trabalharam 600 militares e 1.200 civis.”
Minas já estava sendo ultrapassada, com o maquinista Nelson Silva sustentando uma velocidade de 80 km/h. Orgulhoso, ele também considerava uma recompensa a sua função naquela viagem, aguardando o momento de receber cumprimentos das autoridades, na hora da chegada. Era o que dizia, quando avistaram Uberlândia (MG), onde o secretário de Transportes de São Paulo aderiu à comitiva, numa parada de 5 minutos, sob o frio mineiro. Um apito, a partida. Agora, a próxima parada seria Brasília.
“Todos retornaram ao restaurante, onde um cardápio bem impresso dizia: — “Jantar — Aperitivo — Creme de Mandioquinha — Peru à Califórnia — Arroz Natural — Sobremesa — Café, licores — 20 de Abril de 1968”. Estavam na última etapa e a decisão foi unânime:
“— Ninguém foi dormir.”
Uma ida ao carro dos militares permite conhecer o esquema de segurança, organizado para evitar qualquer tipo de contratempo no percurso pioneiro. Do Estado de São Paulo até Goiás, mais de 1.200 homens foram mobilizados para guardar as estações por onde passaria o trem 120-120. Nas passagens de nível, um mínimo de 5 soldados, comandados por um sargento, tinham feito revisão 10 minutos antes de ouvir o barulho da máquina se aproximando. Tudo cronometrado. Nos 558 metros de túnel, ninguém passaria, mesmo se fosse funcionário da estrada fazendo revisão — só acompanhado por um policial. E, no próprio trem, um delegado comandava uma equipe que ninguém sabia ao certo de quantos homens era formada. O comissário paulista Antônio Cardoso disse que se tratava de um esquema normal, fazendo questão de esclarecer aos repórteres:
“— Não é nada de mais. Essa importância é maior quando sabemos que viajam conosco jornalistas de todo o Brasil.”
A eficiência do esquema foi provada duas vezes. A primeira, às 23h30, ainda em território de Minas, quando a máquina sofreu uma pane. Desceram os homens da direção da Mogiana e alguns policiais, para verificar o que houve, junto ao maquinista. Constatou-se que tinha sido apenas uma descarga elétrica, e a viagem prosseguiu imediatamente. A segunda, quando se confirmou que 2 trens — um na frente e outro atrás, com tripulações e materiais especiais — davam cobertura à composição que fazia a primeira viagem Rio — Brasília.
À 1h da madrugada de domingo, numa estaçãozinha de Goiás, podia-se ver que agora eram soldados do Exército que respondiam pela segurança. Eles estavam lá, em forma, olhando os passageiros que acendiam as luzes das cabines para saber o nome da cidade — Roncador. Na estação, o anúncio de uma casa comercial: — “Compre na Casa Revolução, que desde o dia 31 de Março baixou os preços das mercadorias”. Depois, o retorno ao sono, às rodas de baralho, ao bate-papo em que a importância de Brasília ganhava preferência como assunto. Muitos diziam que, só atravessando o País por terra, como naquela hora, é que se pode sentir a importância da Capital Federal.
Pela manhã, após o café, começa a crescer a expectativa. O trem já corria nos trilhos cuja inauguração se fazia naquela viagem. Povo olhando curioso. Conversas sobre índios, diligências, caçadores, onças. Renascia o ar pioneiro, bem-humorado, do instante em que deixaram a gare D. Pedro II. O mesmo clima quando atingiram a pequena cidade de Ciro Castilho, a 150 km de Brasília, onde já apareciam crianças com bandeirolas. Cada um procura melhorar um pouco a própria aparência. Afinal, a viagem tinha sido descontraída, mas a ocasião devia ser solene.
Malas prontas, máquinas preparadas, cadernetas nas mãos, militares, fotógrafos, repórteres, todos começaram a ficar agitados na altura do quilômetro 20. Muita gente dos dois lados dos trilhos. Gente do povo, endomingada, mulheres com crianças no colo, escolares com bandeirolas, homens que andaram de ônibus, de caminhão e de carro para saudar o primeiro trem, tão esperado por Brasília. Aperto na estação Bernardo Sayão. Começa o foguetório. A banda de música ataca “A Banda”. Eram 10h17; o trem chegara no horário.
Então os primeiros trens, assim como o pioneiro, chegavam até a Estação Bernardo Sayão, localizada entre o Guará II e o Núcleo Bandeirante (que nos primórdios era a antiga Cidade Livre).
Hoje essa estação segue sem uso pela ferrovia, servindo de moradia a algumas famílias. Apesar de mau cuidada, segue de pé como se ainda esperasse o trem chegar. Uma antiga vila de ferroviários resiste no local, mas muita das casas estão bem descaracterizadas. A estação definitiva de Brasília, Rodoferroviária, só entraria em operação no final dos anos 70 começo do anos 80.
Assim surgiu o que seria batizado de Expresso Bandeirante e que permaneceu ativo até 1992.
No próximo capítulo dessa série falaremos sobre o futuro da ferrovia e o Trem Inter metropolitano que pretende ligar o centro de Brasília às cidades da região sul por onde a linha passa, inclusive importantes cidades do Entorno do DF.
Com informações da Revista Ferroviária de julho de 1968
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