Logo nos primeiros anos do surgimento da religião islâmica na Arábia do século VII, muitos muçulmanos realizaram uma peregrinação para a Abissínia, atual Etiópia, no episódio que ficou conhecido como “Primeira Hijrah”. Por volta de 613-614 as perseguições sofridas pelos primeiros muçulmanos eram intensas, indo desde a tortura até a morte.
Exemplo clássico dos sofrimentos que os primeiros muçulmanos e companheiros do Profeta (sahaba) tiveram de passar é o caso de Bilal ibn Rabah, um escravo de origem abissínia que sofria constantes torturas por parte de seu senhor, Umayyah ibn Safwan, que o deixava sob o sol quente do deserto, amarrado e exposto com uma pesada pedra sobre o peito.
Entretanto, outra característica da comunidade islâmica (ummah) era justamente sua resiliência: no caso de ibn Rabah, por exemplo, mesmo sofrendo as diversas torturas ele ainda proclamava em voz alta a fé islâmica, exaltando a unicidade de Deus. Devido à bela voz que tinha, foi posteriormente o primeiro muezzin do Islã, isto é, aquele que chama os fiéis para a oração.
Porém, muito embora as coisas vieram a melhorar para Bilal ibn Rabah e para os muçulmanos após a conquista de Meca pelo Profeta Muhammad, os fiéis do Islã chegaram ao ponto de ter que fugir de sua terra natal por conta da perseguição que sofriam por parte dos árabes coraixitas, que por sua vez eram pagãos politeístas que não toleravam a religião islâmica, principalmente porque a mesma negava os deuses adorados pelos árabes tribais.
Naquele período não era somente os escravos a serem perseguidos por terem renunciado a paganismo e abraçado o Islã, mas também muçulmanos “bem-nascidos”, como o caso de Khalib ibn Said, que sofria nas mãos da própria família, sendo trancado pelo pai e privado de água e comida. Indo mais além, outro caso que vale a pena mencionar é o de Ammar ibn Yasir, um escravo liberto que era tão maltratado pelos coraixitas do clã dos Makhzum que a mãe dele acabou morrendo.
Diante disso, o Profeta decidiu encontrar um local seguro para os fiéis de sua religião, optando assim pela Abissínia. Cruzando o Mar Vermelho para a Abissínia, dezenas de muçulmanos fariam essa jornada para que assim pudessem ter um pouco mais de segurança, se refugiando em território cristão.
Conforme os historiadores árabes-muçulmanos, a migração dividiu-se em dois grupos: no primeiro grupo de emigrantes incluía a filha do Profeta, Ruqqaya, juntamente com seu genro, Uthman ibn Affan, que por sinal viria a se tornar o terceiro califa do Islã após a morte do Profeta. Os migrantes eram liderados por Uthman ibn Mazum, que por sua vez já professava a fé no monoteísmo antes de se converter ao Islã.
O grupo, totalizando cerca de 11 homens e 4 mulheres, teria embarcado em um navio mercante no porto de Shuauiba e pagando meio dinar cada pela viagem no ano 615 (7 anos antes da Hijrah do Profeta) ou 613 (9 anos antes da Hijrah), a depender da fonte. Dessa maneira, os refugiados de Meca atravessariam o já mencionado Mar Vermelho.
Ao chegar no destino, explicaram sobre o que havia acontecido, relatando as perseguições e como deveriam seguir costumes opressivos e bárbaros, como permitir que o rico explorasse o pobre, juntamente com a prática da idolatria.
Logo após a chegada dos muçulmanos na Etiópia, os coraixitas ficaram sabendo da migração e decidiram imediatamente enviar uma delegação com dois embaixadores (Abdalah Bin Abi Rebiah e Amr Ibnel As) para negociarem com o Negus abissínio, provavelmente o Rei Ashama ibn Abjar. Por conta disso, o negus indagou aos muçulmanos no que eles acreditavam, perguntando também como era a crença dos fiéis do Islã em Jesus Cristo. Como resposta sobre o Islã, os muçulmanos disseram:
Na Abissínia, os muçulmanos fundaram uma pequena colônia sob a proteção de Ashama ibn Abjar, o rei (negus) etíope. É interessante observar que indivíduos provenientes de Meca eram tidos como inimigos desde a ocasião do Ano do Elefante, mas nada disso impediu que Ashama tratasse os muçulmanos refugiados com dignidade e respeito, protegendo-os das investidas coraixitas que tentavam arrasta-los de volta para Meca, local onde viriam a sofrer imensamente mais uma vez, possivelmente chegando até ao martírio, caso o negus cedesse aos pedidos dos pagãos mequenses.
Ao permitir que os muçulmanos permanecessem na Abissínia, o negus teria se convertido ao Islã, sendo lembrado na literatura islâmica como um dos primeiros convertidos não-árabes, mais especificamente africanos, juntamente com Bilal ibn Rabah e Amu Aymen.
Mais tarde quando Ashama ibn Abjar veio a falecer poucos anos depois, o Profeta Muhammad oraria conforme se reza após a morte de um muçulmano, demonstrando efetivamente a conversão ao Islã do governante da até então Abissínia Cristã1. Hoje em dia o mausoléu onde encontra-se o corpo de ibn Ajar é um local muito visitado pelos muçulmanos etíopes e de demais regiões africanas, que por sua vez rezam pelo primeiro rei convertido ao Islã.
NOTAS
[1] A Abissínia não era considerada aquilo que convencionalmente é chamado de “cristianismo ortodoxo”, uma vez que eram monofisitas, isto é: reconheciam em Cristo apenas a natureza divina. Na época, a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa formavam uma só, portanto a doutrina monofisita é considerada herética em ambos os “hemisférios” até os dias de hoje. Apesar disso, ainda eram aliados do Império Bizantino, que possuía interesses na região.
FONTE: HISTORIA ISLÂMICA